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Ciência brasileira ganha protagonismo em meio à pandemia de Covid-19

A emergência evidenciou a capacidade dos pesquisadores do país de produzir evidências de altíssima qualidade capazes de mudar a prática clínica

Por Giulia Vidale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 3 out 2021, 14h00

A pandemia de Covid-19 conferiu à ciência nacional um papel de protagonismo na busca por soluções para a pior crise sanitária dos últimos cem anos. Desde 2020, o Brasil tem realizado pesquisas clínicas de vacinas e tratamentos cujos resultados se mostraram extremamente relevantes para o combate da pandemia. Além disso, diversas instituições públicas também produziram ciência e tecnologia, com o desenvolvimento de testes para detecção do Sars-CoV-2, potenciais imunizantes e respiradores.

Segundo informações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), atualmente 39 estudos clínicos de medicamentos e produtos biológicos, incluindo as vacinas e tratamentos contra Covid-19, estão em andamento no país. Outros 25 foram finalizados e 54 ainda não iniciados.

Entre as vacinas, a de Oxford-AstraZeneca foi a primeira a ser testada no Brasil. A fase III do estudo recrutou mais de 10 000 voluntários em diversas regiões do país em tempo recorde. A celeridade brasileira permitiu a rápida comprovação da eficácia e segurança do imunizante e sua aprovação na Inglaterra ainda em 2020. Metade dos voluntários incluídos no artigo publicado em dezembro na prestigiosa revista científica The Lancet, passo fundamental para aprovação da vacina a uma velocidade vertiginosa, era do Brasil. Depois disso, vários desenvolvedores de vacinas que estão em uso também iniciaram testes no país, incluindo Pfizer-BioNTech, Instituto Butantan e Janssen.

O exemplo recente mais significativo da relevância da pesquisa clínica brasileira durante a pandemia é a publicação de um estudo com o medicamento tofacitinibe, da Pfizer. Coordenada pela Academic Research Organization (ARO) – divisão para realização de estudos clínicos no Brasil – do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, a pesquisa mostrou que o tratamento reduziu em 37% o risco de morte ou falência respiratória entre pacientes internados com quadros moderados de Covid-19.

“A produção e a divulgação da ciência brasileira nesse período de pandemia ajudaram a mostrar, com evidências, que a ciência é o que realmente nos tira a de uma situação como essa”, afirma o cardiologista Otávio Berwanger, diretor da Academic Research Organization (ARO) do Einstein.

O estudo foi publicado no The New England Journal of Medicine, o periódico científico médico mais importante do mundo. Foi um trabalho 100% brasileiro, coordenado pelo Einstein, que envolveu diferentes centros pelo país, e que traz respostas relevantes para a pandemia com impacto no mundo inteiro. “Esse trabalho foi visto pelo New England como uma pesquisa que muda a prática clínica em Covid. A última vez que o Brasil mudou a prática em alguma enfermidade foi em doença de chagas”, diz o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.

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Testes clínicos realizados pela Coalizão Covid-19 Brasil, uma aliança para a condução de pesquisas que reúne o Einstein, HCor, Hospital Sírio-Libanês, Hospital Moinhos de Vento, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, a BP – Beneficência Portuguesa de São Paulo, o Brazilian Clinical Research Institute (BCRI) e a Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet), com hidroxicloroquina, azitromicina e dexametasona também contribuíram para a adoção de protocolos clínicos mais eficazes contra a doença.

“Fizemos o primeiro trabalho controlado a mostrar que a hidroxicloroquina não funcionava. A hora que isso foi exposto, o mundo olhou para nós e viu que somos capazes de fazer pesquisas de grande qualidade, com dados confiáveis, que cuidamos bem do paciente e, mais do que qualquer outra coisa, que temos bons profissionais de pesquisa aqui”, afirma Rizzo.

A Coalizão, iniciativa inédita criada para a realização de pesquisas sobre Covid-19, é um dos legados do protagonismo da ciência brasileira nesse período. O grupo continuará existindo mesmo após o fim da pandemia e outros estudos, além da Covid-19, estão engatilhados.

O aumento da publicação de artigos de grande impacto é outro legado deste período. De acordo com levantamento do Sírio-Libanês Ensino e Pesquisa, a produção científica brasileira aumentou 24,6% em 2020 em relação ao ano anterior. Para fins comparativos, os Estados Unidos tiveram um aumento 14,8% no mesmo período.

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O Hospital Israelita  Albert Einstein foi pioneiro na criação de uma divisão para realização de estudos clínicos no Brasil, com início em 2017. A existência da unidade foi fator primordial para o país liderar grandes estudos multicêntricos.

“O fluxo tradicional é o Brasil participar apenas como coadjuvante em um projeto que vem de fora. O que nós fizemos na ARO Einstein foi justamente o contrário. Nós desenvolvermos o protocolo, o projeto e lideramos o estudo. Escrevemos o artigo e o submetemos à análise para publicação. Isso mostra que o Brasil, tendo uma estrutura profissionalizada de pesquisa clínica, como a ARO Einstein, comparável às maiores AROs do mundo, é capaz de fazer um estudo, dar uma resposta convincente e publicar na melhor revista do mundo um resultado que muda a prática clínica”, explica Berwanger.

Entre 2019 e 2020, foram finalizadas na ARO do Einstein 23 pesquisas clínicas das áreas de oncologia, cardiologia, imunologia e neurologia. Atualmente, 25 projetos estão em andamento, sendo cinco em fase inicial. Desde sua criação, em 2017, 22 artigos foram publicados em periódicos científicos de alto impacto.

Nas universidades públicas, houve grande mobilização. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, coordena o estudo com a vacina de Oxford no Brasil e está envolvida em mais de 200 pesquisas em Covid, incluindo vacinas, fármacos e os efeitos da pandemia na população. Segundo Soraya Smaili, professora de farmacologia da Unifesp e coordenadora do centro Sou_Ciência, as universidades públicas brasileiras realizaram mais de 1.400 projetos em Covid nos últimos 18 meses.

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Um dos estudos conduzidos na instituição é uma tese de mestrado orientada pela infectologista e virologista Nancy Bellei, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Coronavírus da Unifesp e consultora do Ministério da Saúde para a Organização Pan-Americana da Saúde e para a Organização Mundial de Saúde. A investigação acompanhou a resposta da CoronaVac em pacientes cardiopatas. “Os resultados parciais desse estudo, que ainda está em andamento, mostraram que 90 dias após a vacinação, a maioria não apresentava mais anticorpos. Além disso, cinco haviam sido infectados nesse período”, conta Nancy. “Os números foram apresentados ao Ministério [da Saúde] para mostrar que a imunidade não dura nesses pacientes e enfatizar a importância de dar a eles a terceira dose agora. Fazer ciência é isso. É devolver alguma coisa para a população”, diz a especialista.

Um dos principais legados da evolução da ciência brasileira neste período tão sombrio é a aproximação da sociedade com o universo científico. Em alguma medida, termos como ensaios clínicos ou pré-clínicos e teste duplo-cego passaram a ser conhecidos, permitindo ao menos o vislumbre de métodos nos quais a ciência séria se sustenta. “As pessoas não sabiam muito sobre ciência. Hoje, a percepção e o desejo de entendê-l é muito maior”, afirma Soraya Smaili. “É uma herança importante deste período. Quanto mais as pessoas entenderem, mais protegidas da desinformação e das fake news elas estarão.”

Uma pesquisa do Sou_Ciência mostrou que durante a pandemia cresceu em mais de 90% o apoio de pessoas de classes sociais mais elevadas ao SUS. O levantamento também revelou que quase 40% da população gostaria de ter acesso aos artigos científicos, além de se informarem por outros meios. Ao mesmo tempo, é muito baixo o interesse dos jovens brasileiros em fazer ciência. Um estudo realizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo mostrou que menos de 2% dessa população pensam em ciência como uma carreira. Na Alemanha, são 10%. “Isso é um desastre”, lamenta o imunologista Luiz Vicente Rizzo. “Precisamos aproveitar este momento de interesse para criar uma nova geração de pesquisadores no país”, complementa.

No entanto, o apoio à ciência no Brasil ainda é extremamente frágil e, apesar da enorme capacidade e vontade de pesquisadores, em muitas instituições a estrutura de trabalho é precária. Sem falar na falta de financiamento. “No Brasil, o suporte à pesquisa, do ponto de vista econômico e educacional, é muito pequeno.Vivemos uma situação de constantes quedas de financiamento, ao mesmo tempo em que a qualidade da nossa pesquisa e de pesquisadores está sendo reconhecida mundialmente”, diz Rizzo.

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A infectologista Nancy Bellei conta que os investimentos para pesquisas associadas à doenças respiratórias, sua área de atuação, aumentaram muito na pandemia, o que permitiu a realização de diversos estudos. Mas em tempos normais a realidade é outra. “Há uma dificuldade imensa no dia a dia, com atraso de verba e burocracias que atrasam as pesquisas”, conta.

Os cientistas brasileiros já mostraram que fazem ciência de primeira linha. Agora, é preciso que sociedade e governos forneçam o apoio necessário para que o Brasil avance na geração de conhecimento.

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