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Xi veio para ficar

Com o fim do limite de dois mandatos, presidente tenta fortalecer-se para aprofundar reformas econômicas e enfrentar eventuais insatisfações

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 mar 2018, 06h00 - Publicado em 2 mar 2018, 06h00

Nas críticas feitas a Xi Jin­ping na semana passada, os chineses colocaram nas redes sociais imagens do meigo ursinho Pooh (ou Puff) abraçando um pote de mel com um sorriso no rosto. “Encontre aquilo que você ama e então não largue mais”, dizia um dos memes. A cintura e o formato da cabeça de Xi Jin­ping lembram o personagem da Disney, mas não é só isso. O anúncio de que a Constituição deverá ser alterada neste mês para permitir que o presidente exerça mais de dois mandatos foi um indício de que Xi quer ser um presidente vitalício. O urso chinês não quer largar o pote do poder. Por causa dessa iniciativa, a China foi apelidada de “Coreia Ocidental” e Xi foi chamado de imperador e de rei. A força que ele acumulará em breve só será comparável à de Mao Tsé-tung, o homem que comandou a Revolução Chinesa em 1949 e entrou para a história como o autor de tragédias de monta, como a Grande Fome da China, entre 1958 e 1962, com 36 mi­lhões de mortos, e a Revolução Cultural, de 1966 a 1976, com 3 milhões de mortos.

Foram os abusos de Mao que levaram Deng Xiaoping a criar contrapesos para o poder unipessoal — entre eles, o limite de dois mandatos presidenciais, estabelecido em 1982. Mao não voltava atrás em suas decisões porque ninguém tinha coragem de dizer a ele que algo estava dando errado. Para evitar essa lógica, Deng instalou um sistema em que a responsabilidade era compartilhada. Durante mais de duas décadas, os futuros líderes foram anunciados com cinco anos de antecedência e as trocas de poder aconteceram de maneira suave. Novas políticas passaram a ser testadas em regiões menores antes de ser aplicadas nacionalmente.

Xi, que assumiu a secretaria-geral do Partido Comunista em 2012 e a Presidência do país no ano seguinte, está promovendo um retorno ao passado. Ele se cercou de acólitos, que só lhe acenam positivamente com a cabeça. Os que não simpatizavam com ele foram perseguidos por uma campanha supostamente contra a corrupção, que pôs vários chefões na cadeia. “Xi está tornando a China ainda mais leninista, com uma ditadura comandada por um corpo de vanguarda altamente disciplinado dentro do Partido Comunista”, diz a americana Susan Shirk, diretora da escola de políticas globais e de estratégia do 21st Century China Center, em San Diego, e ex-subsecretária de Estado no governo de Bill Clinton. “Essa mudança é algo que vai na contramão da sociedade chinesa, que se modernizou com a abertura para o mundo, com a urbanização e a economia de mercado.”

O avanço de Xi Jinping sobre o partido lembra as decisões recentes de governantes autoritários como o russo Vladimir Putin, o venezuelano Nicolás Maduro e o turco Recep Erdogan, mas o objetivo de Xi provavelmente não é perpetuar-se no poder. É possível que ele se atenha ao plano de deixar o posto em 2023, quando completar dois mandatos. O real motivo por trás da mudança da Constituição seria acumular todos os expedientes à mão para exercer um controle total sobre o partido e o governo. Além da extensão do mandato presidencial, o “Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas na Nova Era” será cunhado na Constituição. O objetivo é fortalecer-se para realizar importantes reformas econômicas (leia o artigo aqui). “Para Xi, a legitimidade depende do nacionalismo e do desempenho econômico. Uma condição necessária para que ele consiga isso é transformar a economia dependente de exportações e de investimento público em uma economia voltada para o consumo e os serviços”, diz o americano Evan Medeiros, diretor da consultoria Eurasia e ex-assistente especial da Casa Branca no governo de Barack Obama. “Xi acha essencial ser competitivo globalmente. Ele é uma mistura de mais mercado com mais Estado.”

Para frear o aumento dos gastos públicos e tornar o crescimento chinês sustentável, será imperativo fazer com que as estatais, principalmente aquelas que operam em nível regional, fiquem mais eficientes. “Essa meta vai ser alcançada com várias medidas de gestão e, provavelmente, com o corte de pessoal. Com isso, é de esperar que o desemprego aumente durante alguns anos”, diz o economista Roberto Dumas, professor do Insper. A tensão social, assim, deve crescer. Além disso, a pressão por eficiência e redução de custos entrará em confronto direto com o lobby das estatais dentro do Partido Comunista. Munido da perspectiva de um mandato vitalício e de todos os elogios formais possíveis, Xi terá mais facilidade de superar essas barreiras.

A mão dura de Xi já é sentida em vários lugares. O site Weibo, versão chinesa do Twitter, perdeu vitalidade com tantas amarras para evitar material considerado “socialmente instável”. O público gradualmente o trocou pelos grupos de WeChat, similar ao WhatsApp. Contudo, administradores de grupos passaram a ser intimidados por causa de mensagens contra o Partido Comunista. Insultos contra o presidente podem render dois anos de prisão. Não é o caso, portanto, de esperar uma grande mobilização social. “O fato mais básico é que na China as pessoas não têm alternativa a não ser viver com a censura, e muitos na classe média têm uma visão favorável ao governo”, diz o americano William Nee, pesquisador de China na Anistia Internacional. A repressão não é vivenciada por todos de forma intensa e constante. “Somente quando uma pessoa sofre uma violação de direitos humanos é que ela conhece a brutalidade do aparato de segurança.”

A jogada de Xi envolve diversos riscos. Um deles é que aflorem complôs contra ele dentro do Partido Comunista. Ao abrir caminho para prolongar sua permanência no poder, Xi estaria frustrando o sonho de seus colegas mais influentes e potenciais sucessores. “Pode-se prever que os demais membros do partido se oponham a qualquer movimento que ponha em risco a segurança de suas carreiras”, diz a americana Susan Shirk. O erro de Xi seria, assim, similar ao de Robert Mugabe, no Zimbábue, que tentou transferir várias atribuições a sua mulher, Grace. Isso enfureceu os militares, que passaram a temer o risco de uma ditadura familiar. Mugabe foi deposto no ano passado pelos generais que desejavam o poder. Neste ano, o sul-africano Jacob Zuma, depois de tentar emplacar sua ex-mulher como candidata do partido oficial, também perdeu o posto. Foi destituído pelos comparsas de legenda.

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Xi não está ampliando poderes de sua mulher: amplia os próprios. Por ora, sua campanha contra a corrupção conseguiu calar com sucesso diversos opositores. Ninguém parece contestar sua autoridade e, mesmo se o fizesse, o secretismo do partido tornaria quase impossível o vazamento de alguma desavença interna. “Mas essa tentativa sem precedentes de concentrar poder naturalmente deve gerar muito ressentimento contra Xi Jin­ping”, diz o cientista político chinês Joseph Cheng, que foi professor da Universidade de Hong Kong e participa de grupos pela democracia nas redes. “Quando ele cometer algum erro ou uma de suas políticas gerar polêmica, a oportunidade vai surgir.”

Oportunidade é o que não faltará no futuro. Recai sobre Xi a necessidade de criar um sistema de previdência e uma rede de atendimento de saúde, exigências da nova classe média. Ele também precisará tomar medidas para reduzir a poluição e evitar o crescimento demográfico sem controle das cidades. Ao tentar resolver esses últimos dois pontos nos últimos meses, o resultado foi parco. Para tornar o ar das cidades mais limpo, Xi proibiu as termoelétricas de funcionar, mas deixou habitantes do campo congelando no frio — e voltou atrás. A expulsão forçada de moradores ilegais das cidades em pleno inverno também gerou revolta. Do jeito que vai, Xi agora será o único culpado por todos os seus erros.


O censor que tudo vê

Grande irmão – A ditadura comunista já utiliza câmeras capazes de rastrear transeuntes (//Reprodução)

Um dia após o anúncio de que o mandato do presidente chinês Xi Jinping poderá se estender por tempo ilimitado, os censores de Pequim entraram em ação para reprimir opiniões que se opõem à medida. Na segunda-feira 26, foram apagadas, bloqueadas ou tiveram o acesso restringido nas redes sociais e em seções de comentários de jornais e blogs nacionais quaisquer posições contrárias à decisão. A internet chinesa passou a ter publicações majoritariamente favoráveis a Xi Jinping.

A manobra é consequência do esforço do governo, cada vez mais efetivo, em monitorar e controlar o ambiente virtual, reprimindo ou punindo cidadãos quando julga necessário. Como mostra a imagem ao lado, o regime já possui as ferramentas que permitem até o rastreamento de transeuntes nas ruas, na entrada de fábricas, em shoppings, onde for, com tecnologias de reconhecimento facial. Trata-se de mais uma das armas utilizadas com o intuito de estabelecer um amplo Big Brother em toda a nação.

A foto revela como funciona o software Face++, da chinesa Megvii. Com ele, câmeras comuns são capazes de identificar rostos pelas ruas do centro de Pequim, cruzando as informações colhidas com as armazenadas em redes sociais e em bancos de dados do governo. O sistema, com 95% de precisão, auxiliou a autocracia asiática a prender 4 000 pessoas, criminosos de fato ou simples opositores ao regime, desde 2016. A medida integra um ambicioso projeto, iniciado em 2014, cujo objetivo é usar inovações digitais como forma de controle social. Até 2020, a China pretende coletar e agrupar dados de identificação facial e corporal e de perfis em redes sociais, além de outros de hábitos on-line da população. Com isso, quer fazer um ranking no qual se avaliará a conduta dos cidadãos, devendo premiar quem o Partido Comunista considerar “bom indivíduo”.

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O plano conta com o apoio de oito companhias privadas chinesas, contratadas para criar os softwares e hard­wares que visam a perseguir a população. Entre as escolhidas, destacam-se as duas principais empresas de internet do país: a Tencent, dona do WeChat — uma versão híbrida de Facebook e Whats­App e que é a rede social mais uti­lizada pelos chineses —, e a Ant Financial Services Group, proprietária do ­e-commerce Alibaba, a Amazon chinesa.

A segunda, por exemplo, usou seu sistema de pagamentos digitais, o AliPay, para construir o Sesame Credit, uma fórmula de concessão de crédito. Por meio dessa invenção, ganham mais vantagens financeiras aqueles que demonstram atitudes de apoio ao regime. O pulo do gato é que, na China, quem tem uma boa nota de crédito, por esse quesito, recebe uma série de benefícios, que vão de descontos em compras a um maior destaque em perfis feitos em aplicativos de relacionamentos amorosos. Ou seja, os “bons indivíduos” têm, assim, seu status social elevado.

As vantagens obtidas por meio do Sesame Credit fizeram a população aderir à iniciativa em larga escala. Contudo, nem sempre são bem recebidas essas manobras de censura, que têm aprimorado ainda mais o chamado Great Firewall da China — o amplo filtro de conteúdo digital que impede o acesso a informações que as autoridades consideram perigosas. É o caso do Safe, um aplicativo de vigilância que vem sendo testado em quatro regiões do país desde agosto de 2016. Por meio dele, podem-se denunciar atitudes suspeitas de vizinhos, também ganhando recompensas em troca. Mesmo que o programa já venha instalado em smartphones, há resistência em usá-lo. Diz a economista americana de ascendência chinesa Linda Lim, especialista em relações internacionais da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos: “Os chineses não veem problema em compartilhar dados com o governo para comprovar a própria reputação, como ocorre com o Sesame. Contudo, há um péssimo histórico de monitoramento de vizinhos em favor do Estado, pois essa prática sempre se provou negativa mesmo para quem denuncia”.

André Lopes

Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572

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