Voo cego
É surreal: a nova política tarifária dos aeroportos pode acabar com as exposições internacionais no país
Deguste com vagar a pintura acima. Ela pode ser a última fatia de Bacon num cardápio saboroso: o das grandes exposições no Brasil. Em anos recentes, o público nacional se habituou a ver de Caravaggio ao Francis Bacon (1909-1992) acima, que integra uma mostra da Tate Gallery, de Londres, em cartaz no paulistano Masp. O florescimento do mercado de arte e do circuito de exposições resistiu à crise econômica. Agora, seu futuro é ameaçado por vilãs insuspeitas: as concessionárias que administram os aeroportos do país.
Você não leu errado: empresas que detêm, por concessão pública, a exploração de aeroportos como Guarulhos e Viracopos podem inviabilizar sua oportunidade de ver exposições. No cerne da encrenca está a reinterpretação capciosa de uma regra burocrática. Historicamente, obras de arte trazidas temporariamente ao país eram enquadradas como itens destinados a “eventos cívico-culturais”. A filigrana implica uma diferença dramática de tarifação: ao desembarcarem por aqui, elas pagavam apenas taxas módicas sobre seu peso — como acontece, de resto, dos Estados Unidos ao Japão. Neste ano, as concessionárias revisaram a regra, tirando dos eventos o status de “cívico-culturais”. Na prática, passou-se a cobrar tarifas com base no valor das obras de arte, que muitas vezes excede a casa dos milhões.
A medida, tomada em conjunto e de forma súbita por vários aeroportos sob o olhar complacente da Anac, pode tornar inviáveis grandes mostras no país. Tome-se a retrospectiva do americano Jean-Michel Basquiat, vista por 282 000 pessoas em São Paulo e em cartaz em Brasília. A taxação sobre o acervo superaria o orçamento de 15 milhões de reais da exposição — que felizmente estreou em janeiro, antes da nova política. “Hoje, não haveria Basquiat”, diz o curador Pieter Tjabbes. Com obras avaliadas em 642 milhões de reais, a mostra de Toulouse-Lautrec no Masp, em 2017, pagaria em torno de 4,8 milhões de reais — quase o dobro de seu orçamento.
O fim do status “cívico-cultural” vem embalado na tese de que seus realizadores teriam lucros. Não à toa, o primeiro alvo foi a última edição da SP-Arte, em abril. Apesar de seu caráter comercial, a feira também faz as vezes de uma exposição. “No exterior, feiras como a nossa têm o mesmo benefício das mostras em museus. Aqui, criaram uma jabuticaba tarifária”, diz sua organizadora, Fernanda Feitosa, em ponto de vista endossado pelo Ministério da Cultura.
Na batalha com o Masp — dirigido por Heitor Martins, marido da criadora da SP-Arte —, os aeroportos sacaram outra alegação. “A cobrança de ingresso dificulta o acesso da população”, afirma a administradora de Viracopos. Só que o Masp não cobra ingressos com vista ao lucro, mas à manutenção do museu. “O cidadão paga por esse delírio em dobro: não poderá ver exposições, e seus impostos, que financiam as mostras via Lei Rouanet, irão para os cofres dos aeroportos”, diz Marcello Dantas, um dos maiores curadores do país. Vale frisar: a tarifa não é um imposto, e sim dinheiro dos aeroportos.
A queda de braço produz insegurança jurídica. Eventos “cívico-culturais” seriam apenas os de caráter patriótico, ou cabe — como é razoável — uma noção mais ampla, em que o acesso à cultura seja visto como um ganho civilizatório para o país? No vácuo de uma definição, a expressão é interpretada ao sabor das conveniências. Obras do artista albanês Anri Sala, em exibição até recentemente no Instituto Moreira Salles, pagaram a taxação altíssima. O evento era gratuito, mas o Aeroporto de Guarulhos não achou suas peças “cívico-culturais” o suficiente.
Há dez dias, o Masp voltou à Justiça para evitar o cancelamento da exposição Histórias Afro-Atlânticas, que estreia no dia 28. Na mostra sobre a escravidão nas Américas, as 132 obras de outros países são avaliadas em 600 milhões de reais — pela nova regra, uma fatura de 4,5 milhões de reais. Graças a mandados de segurança, o Masp poderá pagar os cerca de 3 000 reais de praxe. “A arte e a história são conceitos inerentes à educação e à cultura em sentido amplo, como é evidente na Constituição”, diz o juiz Tiago Bologna Dias numa das liminares. Os dois aeroportos recorreram e perderam de novo, mas o mérito da questão ainda será julgado.
A saída para o problema — uma regra que esclareça o caráter cívico das mostras — está com o governo. Os ministérios da Cultura e dos Transportes formaram comissão sobre o tema, ainda sem resultado. “Isso só afeta a reputação do Brasil no exterior”, diz Lucas Pessôa, diretor financeiro do Masp. Realmente, dá vergonha.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2018, edição nº 2587