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Visões de uma nova América

Uma crítica à esquerda americana, um livro de memórias e um estudo sociológico oferecem uma compreensão mais profunda dos Estados Unidos de Trump

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 9 fev 2018, 06h00 - Publicado em 9 fev 2018, 06h00

O presidente dos Estados Unidos não gosta de ler livros, revelou o jornalista Michael Wolff em Fogo e Fúria, que será publicado no Brasil em março. Mas já há uma substancial coleção de livros que leem Donald Trump e seu eleitorado — de ensaios acadêmicos a uma obra memorialística, além de um romance dos anos 30 redescoberto por seu retrato de um político populista.

Trump fora eleito havia exatos dez dias quando, em 18 de novembro de 2016, Mark Lilla, professor da Universidade Colúmbia, publicou um artigo no jornal The New York Times com o título “O fim do liberalismo identitário”. Enquanto reações de choque e incredulidade em variados graus continuavam a fazer manchetes em todo o planeta — a eleição de um populista despreparado, de retórica inflamada e sustentado abertamente pela direita mais violenta da história recente americana não é um evento que se possa chamar de corriqueiro —, toda a força argumentativa e erudição de Lilla concentraram-se em uma devastadora crítica aos liberais americanos (“liberal”, aqui, na acepção que a palavra tem na política americana, equivalente a “de esquerda” ou “progressista”). Segundo Lilla, a preocupação quase exclusiva com discursos para minorias e o foco excessivo na identidade de gênero, raça ou comportamento explicavam, essencialmente, a derrota da democrata Hillary Clinton. A ex-­secretária de Estado do governo Obama fora incapaz de falar aos americanos enquanto americanos, ao buscar apenas minorias fragmentadas e radicalizadas. O artigo de Lilla — o mais lido do Times em 2016 — foi expandido, no ano passado, no livro The Once and Future Liberal (O Liberal do Passado e do Futuro), que será lançado no Brasil pela Companhia das Letras em data ainda indefinida. Trata-se de um livro indispensável para compreender a nova cara da América.

HillbillyEra uma Vez um Sonho, de J.D. Vance (tradução de Léa Viveiros de Castro e Rita Süssekind; Leya; 272 págs.; 49,90 reais) (./Divulgação)

Lilla escreve como democrata, para o eleitorado democrata. Em nenhum momento diminui as conquistas das ações afirmativas e as lutas das minorias. Seu propósito não é atacar o “politicamente correto” em suas versões caricatas. Em vez disso, o que o autor de A Mente Imprudente faz em seu elegante panfleto é reivindicar um retorno à política. Em um arco que se estende do New Deal aos dias de hoje, Lilla mostra que o que caracterizou as duas agendas dominantes da política americana (a do democrata Franklin Delano Roosevelt e a do republicano Ronald Reagan) foi a capacidade de oferecer aos eleitores uma visão da América — a de FDR, pautada pelas ideias de justiça e solidariedade; a de Reagan, orientada pela realização pessoal do sonho americano. A pauta identitária que os liberais adotaram, efeito do isolamento dos progressistas americanos nos câmpus universitários e em bolhas sociais sem contato com a massa de eleitores, levou, segundo o autor, a uma “abdicação” da política: fragmentada, a esquerda americana prefere as passeatas às eleições, as teorias às instituições, o “eu” ao “nós”. O slogan da década de 60, “o pessoal é político”, com todo o romantismo que encapsula, alienou duas gerações de progressistas do grande público, que, não sem razão, não encontra guarida na antipolítica do identitarismo. Sem o voto da classe trabalhadora, dos brancos pobres e da classe média tradicional, como ser um partido para a nação, e não para algumas franjas dela?

O homem branco pobre tende a ser menosprezado nas versões mais grosseiras do liberalismo identitário. No entanto, ele existe, votou no Partido Democrata ao longo de décadas — e migrou em grandes quantidades para Trump na última eleição. Nenhum livro foi tão bem-sucedido em mostrar ao mundo essa outra América quanto Hillbilly — Era uma Vez um Sonho, de J.D. Vance, já publicado no Brasil. Dificilmente a vida de um advogado formado em Yale de pouco mais de 30 anos seria digna de um livro de memórias. Mas, descontada a carreira profissional, a história de Vance é a de milhões de trabalhadores brancos do Cinturão da Ferrugem e dos Montes Apalaches, no Meio-Oeste e no Nordeste dos Estados Unidos. O caipira (hillbilly) americano, que durante as décadas de 50 e 60 do século passado desfrutou considerável ascensão social nos estados industriais do Nordeste do país, é hoje uma demonstração eloquente de que os dilemas americanos não cabem todos na narrativa das conquistas das minorias.

O democrata – Lilla: indispensável (Alcir da Silva/VEJA)

Ilustrando a decadência de sua cidade, Vance mostra que os moradores dos bairros extremamente pobres de Middletown, em Ohio, eram, já no fim da década passada, predominantemente brancos que haviam estudado só até o fim do ensino médio. Era uma Vez um Sonho traz ainda outras informações impactantes: segundo pesquisa do Pew Charitable Trusts, muito mais da metade dos negros, latinos e brancos com diploma universitário espera que seus filhos tenham desempenho econômico melhor que o deles; apenas 44% dos brancos da classe trabalhadora têm essa expectativa, e um número menor ainda tem a sensação de viver melhor que a geração de seus pais. Vance — um republicano conservador — não deixa de frisar a responsabilidade individual pela propagação desse pessimismo e dessa rotina social de fracasso e pobreza reiterados, destacando ainda mais a complexidade do novo quadro social e econômico americano. Não é de espantar que comunidades assim, derrotadas na economia do capitalismo globalizado, e financeira e socialmente decadentes, engendrem algum tipo de rancor social misturado à disfuncionalidade. Vance, que narra com talento literário não desprezível sua trajetória de superação nesse meio adverso — mãe al­coó­latra e drogada, histórico de violência doméstica e núcleo familiar em desarranjo —, captura bem o ressentimento social dessa população, seja contra outros brancos que viviam de assistência social, seja contra o governo de Barack Obama.

O republicano – J.D. Vance: memorialismo com significado sociológico (Astrid Riecken/The Washington Post/Getty Images)

O relato de Vance é antes pessoal que científico, e os dados são apresentados sem maior rigor. Contudo, um estudo de 2017 do economista prêmio Nobel Angus Deaton em coautoria com Anne Case, ambos da Universidade Princeton, oferece dados dramáticos que confirmam essa realidade. Segundo os autores, após décadas de queda no índice de mortalidade da população branca não hispânica de meia-idade, os números começaram a mudar a partir de 1998. Em 1999, a taxa de mortalidade de brancos sem diploma universitário entre 50 e 54 anos era 30% mais baixa que a de afro-­americanos do mesmo grupo. Em 2015, é 30% mais alta, em parte porque a situação dos negros melhorou, mas também porque a dos brancos decaiu, por uma série de “desvantagens acumulativas”. Deaton tem escrito com agudeza sobre os problemas da pobreza econômica. Soluções, contudo, não parecem estar tão à vista.

As obras examinadas até aqui apresentam uma visão crítica das divisões promovidas por movimentos identitários. Mas é imprescindível reconhecer que questões de raça e gênero desempenham papel importante na nova pobreza americana. Evicted — Poverty and Profit in the American City (Despejados — Pobreza e Lucro nas Cidades Americanas), do sociólogo de Princeton Matthew Desmond, analisa o lucrativo mercado de despejos que assola os pobres nos Estados Unidos, ao acompanhar a trajetória de oito famílias expulsas de seu lar. Suas pesquisas indicam um fardo particularmente mais pesado para mulheres negras — caso de Crystal e Trisha, duas personagens do livro, criadas em ambientes violentos e desordenados e, ao que tudo indica, sem chance de romper esse ciclo.

Não será fácil oferecer uma visão comum dos Estados Unidos aos americanos. Seus dramas, seus desafios e seus anseios se conectam e se separam com a mesma força radical da demagogia que se alimenta desse desespero. Mas, para vislumbrarem um destino comum novamente, os americanos precisarão encarar a imagem no espelho — partida, dolorosa, indecifrável, mas sua.

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Para ser lido enquanto houver populistas no poder

No calor da hora – Lewis: um romance da Depressão (George Rinhart/Corbis/Getty Images)

“Por que tem tanto medo da palavra ‘fascismo’?”, pergunta o poderoso banqueiro R.C. Crowley, protagonista de Não Vai Acontecer Aqui, do Nobel de Literatura Sinclair Lewis (1885-1951). Esse romance de 1935 está longe de ser memorável. Ainda assim, a narrativa da ascensão de um político populista e demagogo que derrota o democrata Roosevelt na eleição de 1936 com um inflamado discurso pseudopatriótico e antimexicano seguirá falando aos leitores de qualquer época — enquanto existirem populistas, é claro. Lewis escreveu a obra sob o impacto da radicalização política e social durante a Grande Depressão nos Estados Unidos dos anos 30. O livro oscila entre o retrato da manipulação reacionária das massas em uma sociedade em crise e a elaboração literária de como teria sido a vitória de forças políticas extremistas (exercício imaginativo similar seria realizado, com maior sucesso, por Philip Roth em Complô contra a América, de 2004). Quando Windrip fala em estatizar todo o sistema bancário, controlar os sindicatos, limitar lucros e garantir renda mínima aos trabalhadores, vemos que os demagogos não costumam primar pela coerência — e nem se modernizam.

Não Vai Acontecer Aqui, de Sinclair Lewis (tradução de Cássio Arantes Leite; Alfaguara; 408 págs.; 54,90 reais) (./Divulgação)

 

Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2018, edição nº 2569

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