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Viciados em rodovias

O Brasil priorizou as estradas, e a greve dos caminhoneiros expôs a fragilidade do sistema de transportes

Por Claudio Frischtak*
Atualizado em 1 jun 2018, 06h00 - Publicado em 1 jun 2018, 06h00

O Brasil é um país dependente de rodovias, opção feita na década de 50 e que desde então apenas se aprofundou. Abandonamos — ou quase — as demais alternativas; subsidiamos a mais poluente e não necessariamente a mais eficiente modalidade. Nenhum país continental, com grandes distâncias a ser percorridas, tem a matriz de transportes como a nossa: enviesada para o modal rodoviário e com baixo grau de integração entre os demais sistemas. O desequilíbrio é patente: a participação das rodovias no transporte de carga no Brasil é de 63%, contra 38% dos EUA; já no modal ferroviário ocorre o inverso: nós com 21% e os EUA com 33%. A mesma inversão, ou até mais acentuada, se observa em países como Canadá, China, Índia, Rússia, entre outros com grande extensão territorial. O resultado é conhecido: custos logísticos elevados e baixa competitividade. Para completar, vimos, com a paralisação dos caminhoneiros, a fragilidade no fluxo de mercadorias e passageiros: pode-se parar o país em poucos dias.

Não que tenhamos um sistema rodoviário de excelência. Na realidade, apesar da ênfase rodoviária, nossas estradas estão longe de ser adequadas. De acordo com a Confederação Nacional do Transporte (CNT), 61,8% das rodovias são ruins ou péssimas. O Relatório de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial colocou as nossas rodovias, em termos de qualidade, na posição 103 entre 137 países analisados. O problema é que os demais modais, sobretudo as ferrovias e as hidrovias, são ainda mais insuficientes. Temos assim um longo caminho a percorrer. Investimos pouco e, no mais das vezes, mal, principalmente quando o investimento é executado pelo setor público ou financiado com generosos subsídios pelo governo. Os exemplos do descaso são inúmeros: em rodovias que já deveriam estar asfaltadas e em boas condições, os caminhões continuam atolando; em ferrovias que já deveriam ter sido entregues, o orçamento e o prazo de conclusão só fazem engordar; há hidrovias que deveriam estar desobstruídas e bem sinalizadas mas que décadas de descuido levaram a ser pouco utilizadas; um sistema de cabotagem sabotado pelos subsídios concedidos ao transporte rodoviário (quando o preço do diesel era controlado, o do bunker, usado pelos navios que percorrem nossas costas, não o era); e um conjunto de dutos que nunca se desenvolveu o suficiente por causa do papel dominante da Petrobras.

No Brasil, 63% do transporte de carga é feito pelas rodovias; nos EUA, esse porcentual é de 38%

Que investimos pouco é indubitável: em 2017, todos os investimentos em infraestrutura (transportes, energia elétrica, saneamento e telecomunicações), públicos e privados, em todas as instâncias, chegaram a pouco mais de 1,7% do PIB, o que é bastante inferior ao mínimo necessário para compensar a depreciação dos equipamentos e instalações existentes e, dessa maneira, manter a qualidade dos serviços. Estima-se que o mínimo necessário seria ao menos 2,3% do PIB. Na realidade, na última década e meia, em nenhum momento fomos muito além, e na maioria dos anos ficamos aquém desse mínimo. Em transportes temos investido claramente o insuficiente: entre 0,6% e 0,8% do PIB, quando reequilibrar e modernizar todo o sistema demanda, no mínimo, investimentos da ordem de 2,5% do PIB, mantidos ao longo de duas décadas.

Reverter esse quadro de precariedade dependerá, inicialmente, da reconstrução das contas públicas e da execução das reformas subjacentes. São esses os verdadeiros alicerces da retomada em bases sustentáveis dos investimentos em infraestrutura. Em particular, sem espaço fiscal não haverá recursos para investimentos públicos essenciais, e que nem sempre podem ser atendidos pelo capital exclusivamente privado. Sem normalidade macroeconômica, não teremos um custo de capital baixo, o que é imprescindível para financiar investimentos de longo prazo, inclusive porque a modernização da infraestrutura dependerá cada vez mais do investimento privado. Temos de voltar a galgar a escada da classificação de risco, para assim atrairmos capital externo e ampliarmos a base de investidores que possam aplicar recursos no país. A revitalização da infraestrutura necessita de um programa estruturado, de médio e longo prazo, para consolidar o investimento privado, fundamentalmente por meio de concessões e secundariamente com parcerias público-privadas (PPPs), que exigem recursos públicos. Os investimentos feitos pelo governo vão ter de ser racionados pelas restrições fiscais: devem ser olhados com lupa. Como em outros países, não se daria partida a uma intervenção física ou uma obra sem projeto executivo, sem orçamento confiável ou sem mecanismos eficazes de fiscalização e acompanhamento.

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Não há como reequilibrar a matriz de transportes e prover maior integração dos modais sem uma política de Estado, orientada por planos de médio e longo prazo aderentes à realidade, e construídos de forma conjunta com o setor privado (tal qual no Reino Unido). Aqui os governos gastam recursos consideráveis em planos sucessivos, mas distantes da realidade. É preciso uma política que garanta ao longo de vários governos que as agências reguladoras terão autonomia decisória, e não sejam reféns de políticos, usadas como moeda de troca, como têm sido há mais de uma década. A imprevisibilidade regulatória e a insegurança jurídica afugentam os investidores. Vale lembrar que mudar a matriz de transportes exigirá investimentos realizados com horizontes de duas, três ou mais décadas. Previsibilidade é a chave. Um começo seria aprovar o projeto da Lei das Agências Reguladoras, há tempo tramitando no Congresso.

Se os resultados só serão observados a médio e longo prazo, operacionalizar essa mudança deve começar de imediato, acelerando o processo de concessão. São aguardados, há tempos, projetos como a concessão da Ferrovia Norte-Sul e a renovação antecipada dos contratos de concessão de várias ferrovias em operação, além da resolução dos imbróglios da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) e da Transnordestina, esta uma obra pública travestida de concessão. O BNDES, à procura de um papel de maior relevância, tem a musculatura técnica para dar maior celeridade ao processo e se vê subutilizado, mas carece de mandato, enquanto os ministérios têm o mandato, mas carecem de recursos humanos e técnicos. Finalmente, há mudanças de entendimento que podem alterar a cara do setor ferroviário: nem todas as ferrovias necessitam ser concessionadas. Que tal imitar um bom exemplo e possibilitar a construção e operação de trechos menores (as short lines) com apenas uma autorização?

* Claudio Frischtak é presidente da Inter.B, consultoria especializada em infraestrutura

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585

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