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Uma geração perdida

Prestes a reeleger Maduro, a Venezuela alcança níveis dramáticos de pobreza e fome. As maiores vítimas são as crianças, que sonham com um prato de comida

Por Monica Weinberg, de Caracas | Fotos por Cris Veit
Atualizado em 18 Maio 2018, 06h00 - Publicado em 18 Maio 2018, 06h00

Debruçada sobre o pequeno caixão do filho, a mãe sentiu um torpor no corpo, perdeu o controle dos movimentos e, amparada pelo marido, que trazia a mão apoiada no peito, como quem quer segurar os próprios pedaços, rompeu o silêncio com um grito: “Não vai, meu menino, não vai!”. O lamento de Elisa Nogueira, de 30 anos, fez eco na “sala da despedida” do Cemitério do Leste, em Caracas, a capital da Venezuela. Em meio ao luto, ela e o marido haviam tomado uma dura decisão: cremar o bebê. Preferiam o enterro, pela ideia de preservá-lo de algum modo, mas a cremação saía por um décimo do valor — e o restante do dinheiro serviria para a sobrevivência dos outros dois filhos, de 5 e 8 anos. Fizeram de tudo para evitar aquele desfecho. Quando o menino começou a ficar pálido, inerte no berço, correram a um, dois, três hospitais atrás de soro. Só no último conseguiram algum, mas a dose foi insuficiente. Às 11 horas de uma sexta-feira, aos 5 meses, morreu Mathias, desidratado e vencido por uma parada respiratória — saldo de uma desnutrição severa.

O drama de Mathias é digerido hoje na Venezuela como mais um: em 2017, a cada semana seis crianças morreram por falta de comida, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A fome, aliada à escassez de médicos e medicamentos, fez a taxa de mortalidade infantil voltar aos patamares dos anos 1950. Sim, no Brasil também há registros de crianças que sucumbem à desnutrição, mas eles não chegam nem perto dos números do país vizinho. A Cáritas, ONG ligada à Igreja Católica que produz o indicador desde 2016, concluiu que 65% das meninas e meninos venezuelanos entre zero e 5 anos apresentam sinais de má nutrição — no Brasil são 6%. Na Venezuela, 16% brigam com a desnutrição severa. No Brasil, 3%. Quem vive a rotina dos hospitais venezuelanos garante que o problema é ainda mais superlativo. “Os médicos têm medo de atribuir a causa dos óbitos à desnutrição para não ressaltar o horror da fome”, diz um médico do Hospital José Manuel de los Ríos. Com quase metade do peso adequado para seus 5 meses, Mathias morreu de “parada respiratória”.

A DIFÍCIL ESCOLHA – Mathias morreu com apenas 5 meses de idade, desidratado — saldo de uma desnutrição severa. Como o enterro era caro demais e os pais não tinham como pagar, decidiram cremar o bebê. “Não vai meu menino, não vai”, gritava a mãe, Elisa (Cris Veit/.)

Afundada na crise financeira e na falência da administração pública, que encontram na fome e na pobreza seu subproduto mais perverso, a Venezuela se prepara para a eleição presidencial neste domingo, 20. O clima poderia até ser de certo ânimo diante da possibilidade de alguma saída para o momento mais crítico pelo qual o país já passou — e olhe que a história venezuelana é recheada de tremores institucionais, déspotas e golpes. Mas o que se vê é uma população abatida, desesperançosa, cética do movimento que transcorrerá com roupagem republicana — voto popular e urna. Candidato à reeleição, Nicolás Maduro, que em 2013 assumiu a Presidência com a morte de Hugo Chávez, enfrentará dois nomes sem expressão — a oposição, em peso, preferiu se retirar do processo a dar legitimidade a um pleito feito para Maduro vencer. Já no aeroporto, a ruína democrática está estampada numa frase impressa por toda Caracas: “Aqui não se pode falar mal de Chávez”.

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O GRITO – A médica Marieta Rea comanda um protesto na frente de um dos melhores hospitais de Caracas, onde falta de tudo: os cirurgiões debandaram e as operações, com o pouco anestésico disponível, precisam ser feitas às pressas (Cris Veit/.)
Água, luz e comida são itens escassos (acima, um prato típico, à base de arepa) (Cris Veit/.)

Mais do que as eleições, porém, o que verdadeiramente preocupa os venezuelanos é a comida. “Virou um tormento. Durmo e acordo pensando em como vou alimentar meus filhos”, resume o eletricista José Larez, de 44 anos. A fome tem efeitos particularmente destrutivos nos primeiros anos de vida, porque suas marcas não se apagam na idade adulta. Para o organismo, é uma brutalidade. O bebê que passa fome até os três meses de gestação vive em média 10% menos, mostra uma pesquisa do Instituto Ekamper, da Holanda. O corpo se esforça como pode para manter a nutrição do cérebro em dia, às vezes até sacrificando outros órgãos, mas nem sempre consegue dar conta. “Muitas crianças acabam tendo o desenvolvimento intelectual comprometido”, diz o médico Nelson Neumann, filho da pediatra Zilda Arns e coordenador internacional da Pastoral da Criança. Na escala em que assola a Venezuela, a desnutrição infantil mina as chances de o país deixar o buraco. “Uma geração está sendo tristemente desperdiçada”, lamenta Arlán Narváez, doutor em economia pela Universidade Cornell.

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Em San Agustín, favela de Caracas, o principal duelo de um grupo de meninos que joga basquete, um dos esportes mais populares do país, não é com os adversários, mas com o próprio corpo. “Toda hora chega um e me pede: ‘Vai com calma porque ainda não comi hoje’. Aí eu desacelero o treino”, conta o técnico Jimmi Fariñas. São garotos que vivem na quase miséria, mas há muita gente na espiral da fome que já teve mesa farta. Egressos da classe média, alunos de escola particular, os irmãos Daniela, Andrew e André Prieto, de 7, 9 e 11 anos, vão com a avó ao local onde uma ONG distribui sopa como quem faz um programa especial. É uma oportunidade para tomar contato com um item raro: carne. “Em casa, às vezes a gente até come carne moída, que é mais barata”, diz Daniela, economizando o pedaço de bife mergulhado no caldo.

QUE CLASSE MÉDIA É ESSA? – Alunos de escola particular, os irmãos André, 11 anos, Andrew, 9, e Daniela, 7 (no alto), batem ponto semanal com a avó na distribuição de sopa por uma ONG. “A carne ficou cara”, diz Daniela. A população se habituou aos preços na casa dos milhares (Cris Veit/.)

Obter comida, remédios e produtos de higiene e limpeza na Venezuela é um desafio diário — mesmo para quem tem dinheiro para comprá-los. As prateleiras dos supermercados muitas vezes estão às moscas, reflexo de uma crise brutal de abastecimento. A FAO, o braço das Nações Unidas para alimentação e agricultura, afirma que a Venezuela está no grupo de países de alta “insegurança alimentar”, ao lado de Eritreia, Mianmar e Coreia do Norte. Oito de cada dez lares venezuelanos são vulneráveis no quesito comida — ora têm, ora não. Uma das explicações da escassez está no desmonte da produção de alimentos no país. A Venezuela, que chegou a produzir 70% dos alimentos que consumia, hoje não produz nem 30%. Importar é uma epopeia. O bolívar virou pó diante do dólar, e o governo dificulta a vida das importadoras que lhe desagradam. As “amigas” podem e trazem comida ao país, mas topam com preços tabelados para baixo pelo Estado e preferem desviar quase tudo para o mercado negro, no qual as cifras são infladas. Resultado: almoço e jantar só para quem paga uma fortuna.

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A dúzia de banana custa 70 000 bolívares (acima, um homem com o recibo de pagamento) (Cris Veit/.)

Nesta Venezuela prospera um tipo conhecido como bachaquero (espécie de saúva), o sujeito que vive de vender comida na informalidade. Os pequenos negociantes conseguem os itens madrugando na fila dos supermercados, onde o governo impõe o “preço justo”, mais barato, e de lá saem para comercializá-los na rua mesmo, por até dez vezes mais o que pagaram. Mas quem fatura para valer são os grandes bachaqueros. “Basta ter um carro e ser bem relacionado”, explica um deles, que trabalha como analista de sistemas e, em um dia, ganha mais vendendo comida no paralelo do que em um mês inteiro em seu emprego. Ele, que pede para ficar anônimo, costuma mandar para a clientela, via WhatsApp, listas diárias dos produtos disponíveis na sua “loja”. O esquema envolve caminhões cheios de comida, supermercados e os coletivos — grupos de apoiadores do governo que fiscalizam o abastecimento. Os fiscais deixam no supermercado uns 20% da carga e “compram” de volta o resto, que desviam para depósitos clandestinos, onde os bachaqueros fazem a festa.

Os remédios são tão difíceis de encontrar quanto os alimentos. Na tradicional farmácia de Miguel Mendoza, de 78 anos, uma placa sobressai em meio às prateleiras vazias: “Se não vê o que deseja, por favor, pergunte”. Não há nada para ver, além de uns poucos frascos. Medicamentos para tratamento de diabetes, hipertensão, tireoide, HIV e câncer, só no mercado paralelo. Pasta de dentes, sabonete e desodorante custam duas, três vezes o salário mínimo. “Agora só tenho cliente de classe alta”, diz Mendoza, protegido por grades de ferro que espantam saqueadores.

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Em uma terça-feira, logo cedo, médicos e funcionários agitavam faixas contra a escassez generalizada em frente ao hospital público Doutor José Ignácio Baldó, referência nacional em pneumonologia e cirurgias do tórax. O lugar estava havia quatro dias sem luz (algo comum em todo o país) e as operações precisaram ser adiadas. O resto dos procedimentos foi feito à base de velas e lanternas de celulares dos próprios médicos, que não têm o mínimo com que trabalhar — até antibiótico está em falta, um pavor na ala infantil, abarrotada de casos de pneumonia agravada pela desnutrição. Os doutores que arranjam medicamentos, no mercado negro ou pelas mãos de um amigo que veio de fora, abastecem o hospital. As cirurgias são feitas às pressas para poupar as escassas doses de anestesia.

A Guarda Nacional Bolivariana circula por ali para evitar que imagens do interior do hospital venham aos holofotes, mas às vezes escapa uma sala. Na UTI infantil, José Luis Alcalema, de 12 anos, perdeu 2 de seus 22 quilos desde que foi internado, em dezembro. Compreende-se o fato quando pousam uma bandeja quase vazia sobre suas pernas finíssimas. Cardápio: massa sem molho e uma arepa, espécie de tortilha à base de farinha de milho. “Só quero me curar e ir para a escola”, diz o menino. Adiante, Sarah Guerra, de 5 anos e com os mesmos 13 quilos de 2015, espera pelo contraste necessário para se submeter a uma tomografia. Com dano em uma mucosa do pulmão, ela sorri: “Um dia vou sair daqui”.

Nessa situação, a Venezuela enfrenta uma revoada de cérebros. Escolas e universidades registram todos os dias profissionais subtraídos de seus quadros — na Universidad Central de Venezuela, uma das mais prestigiadas, 30% dos alunos e professores já se foram. A médica Marieta Rea, de 63 anos e há 38 no Hospital Ignacio Baldó, conta que, de doze cirurgiões, só sobraram três. Ela ganha o equivalente a 8 dólares por mês (o mesmo que um professor universitário) e não segue os colegas por teimosia: “Quem vai operar?”.

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ESTÁ FALTANDO FÔLEGO – Observado por Che Guevara, figura onipresente nos muros de Caracas, Dalgo Zamaro, de 12 anos, quer ser jogador de basquete quando crescer, como quase todos os meninos de sua idade. Durante os treinos, porém, ele e os outros às vezes ficam tontos por não ter comido — e o técnico alivia no treino (Cris Veit/.)

Estima-se que cerca de 4 milhões de venezuelanos (12% da população) tenham abandonado o país desde que a crise mostrou sua face mais cruel, de 2014 para cá. Destes, 70 000 cruzaram a fronteira brasileira, 40 000 só em Roraima — uma fatia pobre que não tem do que viver. Os endinheirados bandearam-se principalmente para o Panamá e Miami, rota à qual já estavam habituados. Entre os que podem pagar para sair da Venezuela, só ficam mesmo aqueles que têm uma situação muito superior à média. “Tenho casa em Caracas, na praia e um bom emprego aqui, mas meus seis filhos já se foram com meus netos, que terão certamente mais chances fora”, diz Maria Pereda, de 60 anos, gerente-geral em uma produtora de filmes e ex-diretora do Valle Arriba Golf Club, instalado em uma região de mansões de Caracas. Ali, os únicos sinais de crise se pronunciam nas calças dos garçons (em média dois tamanhos abaixo do que usavam antes) e no cardápio, em que às vezes falta um ou outro item.

Os que permanecem na Venezuela em condições decentes compõem uma minoria cada dia mais acanhada. Na ausência de estatísticas oficiais, três grandes universidades venezuelanas vêm monitorando a taxa de pobreza, que só sobe: está em 87% da população, sendo que 61% são extremamente pobres (no Brasil, são 22% e 4%, respectivamente). “A Venezuela sempre teve um grande contingente de baixa renda, mas nunca a miséria havia chegado a esse nível”, enfatiza Héctor Navarro, ministro durante todo o período Chávez e abertamente anti-Maduro. Em seu celular, ainda se vê o número com que se comunicava com o ex-presidente, identificado como “el jefe”.

As raízes da crise estão fincadas sobre uma união explosiva: a queda no preço do petróleo, que representa 96% das exportações, e o desmanche do setor privado, que sucumbiu diante da mão pesada do Estado sobre os negócios. Muitas terras desapropriadas na era Chávez para a reforma agrária estão às moscas, como se observa na trilha que parte da pequena cidade de San Francisco de Juarez rumo à zona rural, a duas horas e meia de Caracas, antes área de alta produtividade. Quando o petróleo jorrava, Chávez gastou por conta, distribuindo casa, comida e benefícios à vontade. A pobreza retrocedeu de 50% para 30% durante seu governo, segundo dados do Banco Mundial. Mas, quando o preço do petróleo veio abaixo, escancarou-se a fragilidade da economia — que ruiu. E ainda sobrou para o Brasil: recentemente, Maduro avisou que não tem como pagar a dívida de 900 milhões de reais, contraída durante os governos do PT.

Sobre esse terreno movediço a hiperinflação germinou: a previsão para 2018 é de até espetaculares 13 800%, de acordo com o FMI. Um frango custa 3 milhões de bolívares. O salário mínimo não cobre nem as despesas diárias de uma família com alimentação. Para pagar qualquer coisa, é preciso um maço de notas que não cabe na carteira. É uma guerra encontrar papel-moeda em circulação — até a compra de um pão é feita via transferência bancária. Segurando no colo o filho Mikel, de 8 meses, Flor Rodriguez, de 33 anos, tem uns trocados que não dão para o leite. Por isso, faz como muitas mães: complementa a amamentação com uma mamadeira à base de água de arroz. Ela, que vive em um apartamento no Estado de Vargas, debruçado sobre o Caribe, perdeu 8 quilos em um ano — pouco menos que a média nacional, de 11 quilos per capita. Para amamentar, faz o corpo ir ao limite, queimando o pouco estoque que ainda armazena de gordura. Por que teve filho nessas condições? “Não se acham mais preservativos na Venezuela”, diz.

Se não têm o que comer no café da manhã, as crianças não vão à escola, ou, se vão, ficam tontas, sem ânimo. Veem-se meninos e meninas muito novos nas ruas, sem fazer nada, e muitos se juntam a gangues de rua. A criminalidade no país disparou: está em 89 por 100 000 habitantes, o triplo da taxa máxima já registrada no Brasil, que não serve de exemplo para país nenhum. O futuro vai sendo assim ceifado desde os primeiros anos de vida. Em uma família de cinco irmãos, de 2 a 21 anos, Luis Cadiz é o do meio, com 14. Os Cadiz tinham uma livraria, da qual sobrou uma enciclopédia de vinte volumes com caligrafia dourada na capa. Agora se viram vendendo itens de papelaria comprados em Caracas, mais baratos do que na área rural de San Francisco de Juarez, onde moram. Há dois anos não comem carne. Quando Luis pensa em sua vida alguns anos adiante, fica reflexivo, pisca os olhos tristes e diz: “Só não quero mais sentir fome”.

Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583

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