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Uma geração na linha de tiro

Ser criança em favelas como a Rocinha, onde os bandidos dão as ordens, é ouvir tiroteio todo dia e não sair de casa — um exercício de sobrevivência desumano

Por Monica Weinberg Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h26 - Publicado em 23 fev 2018, 06h00

Os tiros espocaram em uma manhã de sexta-feira na Rocinha, a maior favela do país, encravada na Zona Sul do Rio de Janeiro. Yasmin Salustino, de 6 anos, e Amanda Pedreira, de 7, estavam de saída da escola. Suas vozes agudas, alegres, agitadas, silenciaram quando veio o eco das balas. Elas imediatamente se agacharam no chão do pátio e ali permaneceram congeladas, sem dar um pio nem ensaiar nenhuma expressão, durante dois minutos intermináveis. Foi só o barulho cessar para que as duas se levantassem, engatando a conversa animada de antes. Fizeram tudo no piloto automático, bem treinadas, como quem cumpre uma rotina conhecida. E foram brincar de boneca na casa de Yasmin, que apenas disse: “Não tenho medo. Não tenho pesadelo. Sonho com coisas boas”.

Vítima dos estragos provocados pelos sucessivos anos de desgoverno no Rio, uma geração inteira de crianças está pagando o alto preço de crescer imersa em violência. Em janeiro, a média na Rocinha foi de um tiroteio a cada trinta horas. Na semana passada, não houve um único dia de trégua no morro que acomoda 70 000 habitantes e aparece em um relatório da Polícia Militar como área vermelha — território sobre o qual o estado não tem controle. Com o esfacelamento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a bandidagem no comando, a situação deteriorou-se de vez de cinco meses para cá, quando duas quadrilhas rivais entraram em guerra por esse importante naco do tráfico de drogas na cidade. Venceu a facção Comando Vermelho, que enxotou os antigos donos do morro. Na segunda-feira 19, as ruas da favela estavam esvaziadas pelo medo, e nada havia mudado depois do estardalhaço em torno da intervenção federal no Rio.

Aprendendo a sobreviver – Momentos de paz no cotidiano de violência na Rocinha: minutos depois de ouvirem tiros a distância e se jogarem no chão, as amigas Yasmin (acima, à esq.), de 6 anos, e Amanda, de 7, brincam tranquilamente de boneca (Emiliano Capozoli/VEJA)

Fincada no olho do furacão, a casa de Pedro Machado, de 6 anos, localiza-se em uma região da Rocinha conhecida como Roupa Suja. A mãe, Áurea, de 28 anos, diz que tem a sorte de morar entre outros barracos que acabam servindo de escudo para o dela. Há duas semanas, um bandido baleado bateu à sua porta exigindo abrigo. “Se não dou, sou expulsa do morro”, explica ela, que não pôde evitar que o filho visse o homem estirado no sofá da sala. O menino está com “problema de nervos”, garante a mãe. Ainda não foi diagnosticado por um médico porque a trilha para o posto de saúde se encontra tomada por marginais. Quando Pedro ouve tiros, também tem seu ritual: enrola o corpo debaixo da cadeira e espera os disparos cessarem.

Aprendendo a sobreviver – Camila não larga o filho Davi, de 7 meses, que ainda chora muito cada vez que ouve o fogo cruzado (Emiliano Capozoli/VEJA)

A rotina das crianças criadas em um cotidiano de violência deixa marcas. Programado para sobreviver, o organismo arranja meios de se adaptar às adversidades. Mas a experiência de graves e prolongadas situações de stress faz o corpo entender que essa é a regra, ficando sempre alerta, pronto para reagir — e assim produz certos hormônios além da conta, como o cortisol. “Nessas condições, a estrutura e o funcionamento do cérebro tendem a se alterar. A capacidade cognitiva é afetada. Podem surgir comportamentos violentos e transtornos psiquiátricos, como ansiedade e depressão”, afirma Guilherme Polanczyk, professor de psiquiatria da infância e da adolescência da Universidade de São Paulo. Quanto mais nova a criança, mais destrutivo o impacto. Um estudo da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, deixa claro: esse stress é “tóxico”, com efeitos que muitas vezes duram toda a vida.

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A dor fica – Ivanilda chora ao lado do filho, Kaíque: “Uma bala furou a parede da nossa casa, e achei que ele tinha morrido” (Emiliano Capozoli/VEJA)

A dona de casa Ivanilda Delfino, de 45 anos, ainda treme e chora quando revive a madrugada em que uma bala atravessou a parede de sua casa, no Complexo do Alemão — conjunto de favelas da Zona Norte carioca que já foi um dos mais vistosos símbolos da pacificação no Rio (hoje é outra explosiva “área vermelha”, na classificação da PM). Foi correndo ver como estava o filho, Kaíque, então com 6 anos. Encontrou o garoto de olhos fechados no sofá, com o rosto sujo de terra e o corpo mole. Achou que tivesse morrido; felizmente, só estava dormindo. O episódio tatuou a vida da mãe e do filho para sempre. Ela não desgruda mais dele. Aos 10 anos, Kaíque praticamente só sai de casa para ir à escola. “É ele, a bola e o videogame quase o dia inteiro”, relata Ivanilda.
Uma pesquisa encomendada pela Pastoral da Criança, que ouviu mães em locais vulneráveis do Rio, mostra que elas se sentem mal em deixar os filhos fechados em casa, mas não têm outra opção.

O resultado: crianças que ficam em torno de cinco horas em frente à TV. Esse não é o único problema da clausura forçada pelas circunstâncias. “Quanto maior a violência, menor é o acesso a serviços públicos, porque as pessoas ficam imobilizadas”, observa o médico Nelson Arns Neumann, coordenador internacional da Pastoral. Em uma das maiores favelas do Rio, o Jacarezinho, na Zona Norte — também na rota vermelha da PM —, veem-se várias expressões dessa infância de horizontes estreitos. Aos 14 anos, Gabriela da Conceição conta os dias para completar 15. Seu presente será ir à padaria da esquina a pé. “Vivo presa”, lamenta. “É duro fazer um filho voar aqui. Ele fica engaiolado mesmo”, resigna-se Thereza Souza, que cria a neta, Laís, de 10 anos.

Refresco – Lazer no quintal: Laís, de 10 anos, aproveita um momento de trégua no conflagrado Complexo do Alemão (Emiliano Capozoli/VEJA)

Nas favelas conflagradas do Rio, as escolas são como ilhas, em que a face violenta fica do lado de fora. Mas, com o avanço do crime, isso deixou de ser verdade absoluta: no ano passado, a estudante Maria Eduarda Ferreira foi alvejada na cabeça e morta, no pátio do colégio, aos 13 anos. Em apenas catorze dos 198 dias letivos de 2017 a rede municipal funcionou em sua plenitude. Pais vão às escolas justificar as frequentes ausências; do contrário, correm o risco de perder o Bolsa Família. Os grupos de mensagens são ativos: uns alertam os outros sobre quais ruelas têm a presença de bandidos armados e os colégios avisam quando precisam cerrar os portões em razão de tiroteios. Se eles acontecem durante a aula, os diretores do município seguem treinamento dado pela Cruz Vermelha. Lição número 1: levar as crianças para um recinto sem vidros e protegido por paredes. “Meu esforço diário é para que a sala de aula seja um contraponto à realidade da rua, mas isso nem sempre é possível”, diz Érika Costa, de 43 anos, diretora do colégio Luiz Paulo Horta, na Rocinha.

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Demarcar valores em um ambiente onde bandidos mandam e desmandam é missão complicada. “Eles são referência de poder, modelos de sucesso que embaralham a noção de heroísmo”, afirma a psicóloga Ceres de Araujo. Mãe de duas meninas e dois meninos, um deles adolescente, Tatiane dos Santos, de 30 anos, desabafa: “Toda mãe que mora aqui na Rocinha morre de medo de ver o filho no crime. É muito fácil pegar o caminho errado”. O temor virou a triste realidade de M.S., de 38 anos, que prefere manter o anonimato. Ela é mãe de um jovem de 17 que largou os estudos e vende drogas em bocas de fumo da favela. Às vezes ele dorme em casa, outras vezes some. “É um desespero. Não consegui vencer a minha batalha. Quem sabe ele muda e entende que assim o futuro é cadeia ou morte”, diz.

“Vivo presa” – Gabriela, 14 anos (de costas), joga bola com os irmãos observada pelo pai: em casa, por segurança (Emiliano Capozoli/VEJA)

Pioneiro nos estudos sobre o impacto das experiências da primeira infância na idade adulta, o americano James Heckman, prêmio Nobel de Economia, enfatiza a importância do esforço em criar um ambiente favorável para o desenvolvimento de crianças pequenas. Isso reduz o risco de, um dia, elas virem a se envolver com o crime, usar drogas ou largar a escola. Em um cenário de pobreza e baixos níveis de instrução, a única via para tentar romper o ciclo do atraso é fornecer educação de qualidade — artigo raro no Brasil e raríssimo em favelas que a toda hora estão debaixo de fogo cruzado. “Em geral, os melhores professores não querem ensinar lá. É preciso criar incentivos para atraí-los, como ocorre em outros lugares pobres do mundo”, diz Claudia Costin, ex-secretária municipal de Educação do Rio. Investir em crianças que estão dando os primeiros passos é o melhor que um país pode fazer para mudar de patamar, reforça Heckman.

Há evidências de que o bebê abrigado na barriga de uma mãe exposta a situações de alto stress tem o desenvolvimento neurológico comprometido — isso num momento em que o cérebro está em franca formação. A desvantagem, portanto, começa a se delinear mesmo antes do nascimento. Um bom ambiente depois ajuda a neutralizar o mau começo, mas justamente aí está o problema desses lugares onde a violência explode: eles são “tóxicos”. Na Rocinha, o pequeno Davi, de 7 meses, vive envolvido nos braços da mãe, Camila Vidal, de 20 anos. Ela usa o corpo para proteger como pode o bebê, que ainda não habituou os ouvidos aos constantes tiroteios. “Ele se assusta, chora muito, mas logo vai se acostumar”, conforma-se Camila, cujo grande temor é Davi ser atingido. Por isso, troca o carrinho pelos braços. É o que está a seu alcance. Nada mais.

Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571

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