Um homem do seu tempo
Pianista Pierre-Laurent Aimard, que se apresenta em São Paulo, é magistral tocando Beethoven — mas celebrizou-se sobretudo por abraçar a música do século XX
O francês Pierre-Laurent Aimard, de 60 anos, não é afeito a convenções. Ao iniciar seus estudos de piano, ainda criança, rebelou-se contra a ideia de ser “apenas” um solista. “Acho muito restritivo. Gosto de trabalhar em grupos”, contou a VEJA, em entrevista por telefone. A salvação chegou pelas mãos de Pierre Boulez. Aimard tinha 19 anos e dois prêmios em concursos eruditos — um deles dedicado à música contemporânea — quando o compositor e maestro francês, um dos mestres mais radicais da vanguarda no século passado, o convidou para integrar seu Ensemble InterContemporain, grupo criado para explorar novas possibilidades sonoras. Desde então, Aimard abraçou as composições de seu tempo.
Estreou peças do alemão Karlheinz Stockhausen e do próprio Boulez, mas o rótulo de porta-voz da música nova também o incomoda: “Faço um balanço entre vários períodos”.
Esse equilíbrio marcará sua estada de duas semanas no Brasil, no início de agosto, como convidado da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). O repertório de suas apresentações será amplo — de um mestre do romantismo como o alemão Johannes Brahms a contemporâneos ainda atuantes como o inglês George Benjamin, passando por modernistas como o húngaro Béla Bartók. Em algumas récitas, Aimard será acompanhado pela mulher, a também pianista Tamara Stefanovich.
Ainda que resista à associação exclusiva com a música moderna, Aimard é, sim, seu maior defensor entre os pianistas. “Como pode algo tão interessante, tão perto de nós, ser ignorado nas salas de concerto?”, questiona. Ele recusa as acusações de aridez que com frequência pesam sobre a composição erudita do modernismo em diante: “Aprender a escutar essa música equivale a aprender uma nova língua. Você só vai admirá-la quando entender o que aquelas palavras querem dizer”. O interesse na criação contemporânea possibilitou que Aimard convivesse com os compositores que interpreta. Foi próximo do húngaro György Ligeti, que tinha fama de intolerante com solistas, maestros e orquestras. “Ele só queria que sua música fosse tratada com seriedade. Bach e Beethoven deviam ter o mesmo nível de exigência”, diz. O pianista também foi amigo do compatriota Olivier Messiaen, que define como “um sujeito do outro mundo, capaz de entender todos os fenômenos da natureza”. Entre tantas parcerias definidoras, há uma que se deu não com um compositor, mas com um colega pianista, o lendário Alfred Brendel. Aimard recorda os saraus nos quais acompanhava Brendel, que recitava poemas nonsense de sua própria autoria ao som de peças de autores contemporâneos como Ligeti.
A dedicação ao século XX não limita o pianista. Um dos melhores registros discográficos de Aimard é a integral dos Concertos para Piano de Beethoven, sob a regência de Nikolaus Harnoncourt, grande maestro austríaco, morto em 2016. “Harnoncourt odiava rotina. Eu também”, diz Aimard. Seu entusiasmo pela música moderna, afinal, é apenas uma faceta da paixão pela grande música, seja de que período for: “A arte é poderosa, fala de dor, morte, amor. Quem se sentir incomodado com a arte terá de procurar outras atividades”.
Absolutamente moderno
Quatro gravações do pianista francês Pierre-Laurent Aimard que trazem a variedade musical do século XX
Debussy: ‘Preludes’ Books 1 & 2
O francês Claude Debussy (1862-1918) tratava sons e timbres com nuances impressionistas. Já é bem-aceito pelos ouvintes, o que nem sempre ocorre com os compositores abaixo
Messiaen: ‘Catalogue D’Oiseaux’
A delicada partitura do francês Olivier Messiaen (1908-1992) — um homem capaz de “entender todos os fenômenos da natureza”, diz Aimard — evoca o canto dos pássaros sem cair no piegas
György Ligeti Edition, 3: ‘Works for Piano Études’, ‘Musica Ricercata’
A execução dessas peças do húngaro György Ligeti (1923-2006) desafia os pianistas. É preciso muita técnica para alcançar sua marcação rítmica complexa e sedutora
Pierre Boulez: ”Notations’
Radical da vanguarda francesa, Boulez (1925-2016) trouxe Aimard para seu grupo. Em ‘Notations’, criou um grande contraste de sonoridades, ora quase silenciosas, ora explosivas
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593