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Um espião na Casa Branca

O escritor e fofoqueiro que irritou Trump com um livro sobre seu governo conta como é conviver com um presidente que ‘não lê’ e ‘não confia em ninguém’

Por Eduardo F. Filho Atualizado em 9 mar 2018, 06h00 - Publicado em 9 mar 2018, 06h00

Em pouco mais de um ano no governo dos Estados Unidos, o republicano Donald Trump certamente se arrepende de ao menos uma decisão: não ter se importado quando o escritor e jornalista Michael Wolff, de 64 anos, anunciou o desejo de fazer um livro sobre os 100 primeiros dias de seu governo. Fire and Fury: Inside the Trump White House (Fogo e Fúria: por Dentro da Casa Branca de Trump) vendeu mais de 2 milhões de exemplares em cerca de um mês. O livro — que sai no Brasil no sábado 10 pela Objetiva — despertou a ira de Trump, que acionou seus advogados na tentativa de barrar a publicação. Conhecido por suas colunas sociais na revista New York, Wolff é criticado pela superficialidade alcoviteira, mas o fato é que obteve acesso inédito aos bastidores do poder. Com a anuência do presidente, passou meses dentro da Casa Branca, observando de modo maroto o estilo Trump de governar. O que essa mosquinha indiscreta viu e ouviu é o tema da entrevista a seguir.

Seu livro irritou o presidente Donald Trump, mas o senhor trabalhou com um apoio surpreendente da parte dele e até teve direito a um espaço reservado, só seu, na Casa Branca. Como obteve tamanha regalia? Eu apenas pedi. O problema da maioria dos repórteres que estão lá dentro é que eles não perguntam o que podem ou não fazer. Talvez por isso eu tenha sido o único a conseguir o feito. Eu estava ao lado do presidente Trump desde junho de 2016. Acompanhei as eleições, o período da transição e a ida dele para a Casa Branca. Para falar a verdade, ele não ligava para a minha presença. Certo dia, perguntei ao presidente se eu poderia ficar circulando ao redor dele e das pessoas de sua equipe. Tudo o que pedi foi um canto onde pudesse ficar observando. De início, Trump achou que eu estava querendo um emprego no governo — e me ofereceu um. Eu o recusei, e disse a verdade: queria escrever um livro sobre os 100 primeiros dias de seu governo. Ele riu de mim. Não pareceu interessado na ideia, apenas respondeu: “O.k., isso me parece chato”. Em seguida, deu um grunhido e soltou um “tanto faz” se eu quisesse ficar por ali. A partir daí, consegui ter acesso livre a todos na Casa Branca.

Na prática, o que esse salvo-conduto lhe proporcionou? Sentado num sofá, fiz cerca de 200 entrevistas com pessoas que me contaram como é trabalhar e conviver com Donald Trump. Mas o principal era estar, despercebido, no centro das decisões. Ao contrário da maioria dos jornalistas, sou um escritor e posso me dar ao luxo de usar isso como desculpa para ficar quietinho, apenas observando. Logo percebi que falar só dos 100 primeiros dias do governo Trump seria pouco: ele fazia coisas bombásticas em série, da controvérsia sobre o muro na fronteira com o México ao escândalo com os russos. E aquilo foi ficando cada vez maior, mais louco — e mais atraente. Eu pensava: “Santa mãe de Deus! Nunca houve um escritor tão sortudo como eu!”.

Sua relação com o presidente americano precede a eleição de 2016. Como se conheceram? Eu o conheço desde os anos 90, quando era colunista da revista New York. Ele me ligava para reclamar que seu nome não tinha sido citado na coluna, quando achava que mereceria um destaque. Muitas vezes, ele nem era o tema da minha coluna, mas, mesmo assim, lá estava Trump me ligando. Sempre tivemos uma boa relação, embora eu não o considerasse um amigo. Éramos apenas conhecidos que se trombam em certos círculos de Nova York.

Se Trump não deu bola de início para o livro, por que a publicação o incomodou tanto? Eu sabia que o presidente não ficaria feliz. Mas sua reação foi mais uma indicação de quem é Donald Trump. Como pode um presidente dos Estados Unidos tentar barrar um livro que provavelmente nem leu? Tenho certeza de que ele nunca vai conseguir impedir a circulação da obra — menos ainda, conseguir lê-la, nem em um milhão de anos. Porque Trump simplesmente não lê. Nada. Ele é um presidente capaz de ameaçar com processo um escritor por publicar informações devidamente gravadas, muitas delas ditas em privado. Ele exigiu que eu disponibilizasse os áudios, como se fossem uma prova. ­Isso nunca vai acontecer. A relação de um jornalista com suas fontes muitas vezes é anônima e deve ser respeitada.

As ameaças legais o amedrontaram? Nem por um milésimo de segundo. Nunca senti medo de ser processado por Trump. Ao contrário, eu me senti agraciado e abençoado por Deus. O único efeito disso foi o aumento significativo das vendas do meu livro ao redor do mundo. Eu e meus editores chegamos a responder às cartas enviadas por Trump e seus advogados. Categoricamente, dissemos que não iríamos parar a publicação — se eles quisessem nos processar, tudo bem. Ficaríamos extasiados em vê-los no tribunal.

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Não é exagero dizer que Trump não lê? Ser presidente dos Estados Unidos envolve uma série de especialidades, mas a mais básica de todas é a habilidade de absorver muitas informações ao mesmo tempo. E Trump não lê absolutamente nada, nunca. E ele não escuta. Eis a questão: ele não gosta de pensar. É o pacote completo. Depois de um ano na Presidência, continuo certo de que ele não tem condições de ser presidente. Minha impressão, aliás, só piorou nesse período.

O senhor falou com o presidente depois da publicação? Não. Até segunda ordem, nossa relação acabou. Mas eu não ficaria surpreso se daqui a duas semanas meu telefone tocasse e fosse Trump do outro lado da linha, rindo e comentando como o livro está sendo um sucesso. Ele tomaria os créditos pelo êxito; é a cara dele fazer isso.

O que explica a eleição de Trump à Presidência americana? Eis um mistério fantástico que diz algo sobre o tempo em que estamos vivendo. Sinto que todos ainda querem entender como isso aconteceu e o que significa para o mundo. Creio que meu livro, ao mostrar como funciona o Trump real, traz algumas dessas respostas. É como se juntasse os destroços dessa tempestade política que aconteceu nos Estados Unidos. As pessoas estão virando as páginas do livro e, enfim, compreendendo melhor o que anda se passando no país. Ou, pelo menos, eu espero que estejam.

Como observador íntimo do governo Trump, como imagina seus próximos lances? Veremos. O segundo ato vai começar provavelmente em novembro, com as eleições para o Congresso. E eu aposto que será um segundo ato muito sangrento. Se os democratas conquistarem a maioria, é provável que o presidente sofra um impeachment. E, pelo que estamos vendo hoje, os democratas sem dúvida conseguirão isso. Mas, até lá, Trump fará tudo o que estiver a seu alcance para inverter o cenário negativo, incluindo a demissão de promotores e de quem quer que lhe seja uma pedra no sapato. Ele é capaz de tudo para não perder o poder. Mas, mesmo que os democratas percam a eleição e Trump faça o que se espera dele, as chances de sofrer um impeachment continuarão sendo grandes. As acusações contra o presidente a respeito da ingerência russa nas eleições são poderosas. Novembro será um momento histórico.

O senhor narra no livro que a família, os amigos e os assistentes tinham certeza de que Trump não iria ganhar o pleito de 2016. O que provocou uma inversão tão brutal de expectativas? Foi uma situação de tempestade perfeita. Ele tinha oponentes fracos e era obviamente um político novo, que se vendia como antídoto à velha política — um discurso em alta, aliás, no mundo todo. Trump foi eleito por uma parte da população que estava cansada e se sentindo esquecida. De certa forma, eleger uma pessoa que nunca esteve ligada à política tradicional foi um experimento notável. Mas claro que há outro lado: ele era um candidato sem nenhuma qualificação para ser presidente. Não creio, porém, que tenha comprado o colégio eleitoral dos Estados Unidos para se eleger, como alguns sugerem. Trump não seria tão baixo.

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Que Trump vem à tona ao se passar alguns minutos numa sala com ele? Eu penso em Trump como um vendedor nato. Ele está tentando vender o governo dele à população, porém ninguém está querendo comprar até agora. Inclusive no trato com os membros da equipe ele é assim: se você não é mais útil, acaba virando apenas um produto em liquidação na prateleira de Trump. Mas o homem é profundamente enervante. Não é inteligente o bastante, não tem o conhecimento necessário para o cargo, nem é minimamente estável. Tudo é possível com Trump no poder. Ele é uma pessoa maluca. O presidente não confia em ninguém, é autodestrutivo e também não é confiável.

Ele não confia nem na filha Ivanka nem no genro, Jared Kushner, que se tornaram seus braços-direitos na Casa Branca? Os dois estão em uma posição de extrema influência, mas, como eu disse, ele não confia em ninguém. Mesmo se tratando da filha e do genro, que estão a seu lado o tempo todo. É muito difícil influenciar uma pessoa que não escuta ninguém, um homem extremamente ligado a bens materiais e que não está interessado no que os outros têm a dizer. Não existe uma única voz que permaneça na cabeça de Donald Trump por mais de dois segundos, sem que ele perca o interesse no assunto ou na pessoa. Todos que trabalham com ele deveriam se preocupar, porque ninguém está a salvo, nem mesmo sendo da família. A situação é parecida com o que se via no programa que ele apresentava, O Aprendiz: ou ele demite as pessoas ou elas acabam pedindo o chapéu. O bordão “you’re fired” (“você está demitido”) é seu jeito de governar.

O senhor disse em entrevista que o presidente poderia estar tendo um caso extraconjugal. Trump já foi acusado de assédio e seu advogado assumiu que pagou 130 000 dólares a uma atriz pornô para omitir um encontro. Como Trump lida com as mulheres? Não posso afirmar se ele está tendo ou já teve um caso extraconjugal, mas obviamente ele não esconde o longo histórico de conquistas. Este é um dos traços centrais da vida de Trump: ser um mulherengo obsessivo. Uma das coisas que fazem a vida valer a pena para o presidente é levar mulheres de amigos para a cama.

Um presidente instável com acesso ao maior arsenal nuclear do planeta não é uma ameaça à paz mundial? Não acredito que ele esteja interessado em começar uma guerra. Ele só pensa em coisas que seriam benéficas para ele, e uma guerra com a Coreia do Norte não seria vantajosa. Essa é a única boa notícia sobre o presidente, eu suponho. Trump não é como George W. Bush, um homem ansioso para provar sua vontade de ir à guerra. Guerras são muito complicadas, e Trump detesta complicações.

Que vantagem um vendedor nato como Trump obteria ao virar presidente? Tudo o que move Trump é a busca da fama e da atenção. Hoje, ele conseguiu o que queria: riqueza, poder e, de brinde, a Presidência americana.

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Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573

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