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Um caladão inquieto

Homem de poucas palavras e métodos espartanos, Irving Penn — tema de bela mostra em SP — pôs abaixo a fronteira entre a fotografia de moda e a grande arte

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 ago 2018, 07h00 - Publicado em 17 ago 2018, 07h00

Da endiabrada atriz alemã Marlene Dietrich ao blasé jornalista americano Truman Capote, celebridades faziam romaria ao estúdio do fotógrafo Irving Penn (1917-2009) para ensaios da revista de moda mais influente de seu tempo, a Vogue. Ao adentrarem o local, porém, a expectativa por glamour dava lugar à perplexidade: os famosos se espremiam em cenários espartanos e sujos, como uma quina feita de duas tábuas ou um pedaço de carpete velho. Caladão, o fotógrafo nem lhes dirigia a palavra. A tensão só se dissipava quando os personagens — que incluíam, ainda, da musa do cinema Audrey Hepburn ao compositor russo Igor Stravinsky — viam o resultado. “As pessoas se sentiam ofendidas, mas depois amavam”, diz Jeff L. Rosenheim, chefe do setor de fotografia do museu Metropolitan e curador da mostra Irving Penn: Centenário. É irônico que um dos atrativos da magnífica retrospectiva que chegará na terça-feira 21 ao Instituto Moreira Salles, em São Paulo, depois de passar pela instituição nova-iorquina e por Paris e Berlim, seja uma réplica do cenário onde Penn humilhava, ops, fotografava estrelas. Ao fazer as próprias fotos, o público poderá atestar o efeito do palco despojado.

Selfies à parte, é um privilégio degustar as cerca de 240 fotografias espalhadas por dois andares da sede do Moreira Salles na Avenida Paulista. Irving Penn foi nome decisivo na criação da fotografia de moda moderna. Ao longo de seis décadas, desde o fim dos anos 40 até perto de morrer, sua grife visual era inescapável. Mas o homem foi muito maior: com formação vigorosa e inquietude quase renascentista, Penn pôs abaixo a fronteira entre a atividade editorial e a arte, ao explorar a grande tradição do retrato, a natureza-morta, o minimalismo e a experimentação inovadora de técnicas e materiais.

Mundo exótico - Guerreiros aborígines da Nova Guiné: para além da moda, a obra de Penn tem imenso valor etnográfico (The Irving Penn Foundation/Divulgação)
Palco iluminado - Ensaio com Lisa Fonssagrives: após fotografar a beldade sueca, o artista se apaixonaria por ela (The Irving Penn Foundation/Divulgação)

A inquietação fica patente em sua trajetória como retratista. Penn começou a desbravar o gênero durante uma viagem ao Peru. Depois de produzir um ensaio de moda, ele despachou a modelo de volta para os Estados Unidos e viajou até Cusco, a cidade inca encarapitada nos Andes. Lá, alugou o estúdio precário de um fotógrafo local e tomou o lugar deste no ofício de fazer retratos pagos de cidadãos comuns. “Como não falava uma palavra de quíchua ou espanhol, ele desenvolveu seu método de dirigir as sessões apenas com intervenções físicas, arrumando cada pose com as próprias mãos”, diz Rosenheim. Mais tarde, a mesma estratégia seria aplicada às tantas celebridades que Penn fotografou. “À maneira dos grandes pintores do passado, ele demonstrou que um grande retrato nasce da interação entre a personalidade do personagem e a do artista”, diz o brasileiro Sergio Burgi, coordenador do IMS.

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É tudo pose - Mulheres do Benim: interação entre fotógrafo e personagens (The Irving Penn Foundation/Divulgação)
Ás do retrato - O cartunista Saul Steinberg (1914-1999) de máscara: humor (The Irving Penn Foundation/Divulgação)

Penn realizou uma série de trabalhos de imenso valor sociológico e ­etnográfico. Em viagens pelo Marrocos, Benim e Nova Guiné, montava uma tenda no meio do nada e fazia retratos dos nativos com seu cenário clássico. Mesmo quando registrava modelos, Penn não deixava de experimentar. Nos intervalos das sessões, fazia ensaios com trabalhadores urbanos, seguindo a tradição dos retratos de ofícios, que vinha dos gravuristas e fotógrafos do século XIX. Nos passos do francês Henri Matisse (1869-1954), seu pintor favorito, fez também imagens de nus cuja estranheza é o oposto do ideal de beleza dos editoriais de moda. Até bitucas de cigarro que catava na rua viraram tema de naturezas-mortas minimalistas, que preenchem uma sala surpreendente da exposição. Num ensaio, Penn conheceu aquela que seria sua mulher: a modelo sueca Lisa Fonssagrives, beldade que protagonizou algumas de suas melhores imagens de moda. O homem era quietão, mas não dormia em serviço.

Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2018, edição nº 2596

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