Todas as culpas
'Vazante' é alvo de críticas porque, sim, muitas delas cabem ao filme de Daniela Thomas — mas também porque está sozinho nessa arena
Há dois meses, quando Vazante (Brasil/Portugal, 2017; já em cartaz) foi exibido no Festival de Brasília, a diretora Daniela Thomas tomou um susto: no debate que se seguiu à sessão, o filme foi violentamente criticado por espectadores negros que detectaram nele o vício da visão branca e patriarcal. Primeiro trabalho-solo de Daniela na direção, Vazante se passa no início do século XIX, numa fazenda em Minas Gerais que um tropeiro português recebeu como dote de casamento. Chegando de uma viagem de compra de escravos, António (Adriano Carvalho) descobre que a mulher morreu no parto. Passado algum tempo, tenta de novo iniciar uma família. Aproveita-se da falência do cunhado e casa-se com a filha dele — uma criança ainda. Enquanto espera a primeira menstruação de Beatriz (Luana Nastas) para consumar o casamento, António continua a se servir sexualmente da escrava Feliciana (Jai Baptista), que engravida dele. E Beatriz faz amizade com Virgilio (Vinicius dos Anjos), o filho de Feliciana, pondo em marcha uma tragédia.
As críticas têm sua parcela de razão: no intuito de abarcar as violências sobre as quais se estrutura a fundação social brasileira, Daniela de certa maneira as equipara todas. Como sentimento para com as vítimas passadas e presentes, não há ao que objetar. Como representação social, escapa muito à marca: com sua fotografia esmerada em preto e branco, seus planos lentos e sua construção episódica, na qual o protagonismo vai passando de uma a outra pessoa e a tensão dramática se dispersa, Vazante privilegia afinal o ponto de vista de Beatriz — cuja inocência, por tocante que seja, é também ela uma forma de privilégio a que nenhuma das crianças negras nascidas escravas na sua fazenda teria direito. É injusto que, por ser um dos raríssimos filmes sobre um tema central ao país, Vazante tenha de arcar com todas as culpas dessa insuficiência — e Daniela pelo menos iniciou um debate. Por outro lado, também não parece certo que a escravidão, a forma mais bárbara e integral de violação já concebida (à qual o Brasil se agarrou por quanto pôde), entre nesse enredo como mais um drama entre outros.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556