Tem míssil no céu
Não há ameaça nem sanção que faça o ditador Kim Jong-un desistir de seu projeto de construir uma bomba atômica
Foi com um largo sorriso no rosto e com abraços acalorados em seus generais de uniforme cáqui que o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, comemorou o lançamento de seu primeiro míssil balístico intercontinental (ICBM, na sigla em inglês), em uma confortável sala de comando escavada ao ar livre. Segundo a agência estatal da Coreia do Norte KCNA, o projétil foi um recado para os “bastardos americanos”. Kim, então, exortou os cientistas de seu país a “enviar com frequência pequenos e grandes pacotes de presentes aos ianques”, relatou a agência.
A assombração de uma Coreia do Norte munida de armas nucleares de longo alcance persegue os Estados Unidos desde o regime do avô do atual ditador, o comunista Kim il-Sung, que estreou em 1948 a dinastia familiar e aliou seu país com a União Soviética. O discurso dos Kim é que a bomba atômica põe o isolado país em igualdade de forças com a potência americana, garantindo dessa forma a sobrevivência do regime. Até agora, nada conseguiu impedir o avanço do programa militarista norte-coreano, que, na semana passada, cruzou um novo limiar ao lançar o primeiro míssil capaz de alcançar o Alasca. Não há evidências de que Pyongyang domine a tecnologia que permite acoplar uma ogiva nuclear ao projétil e dispará-lo com sucesso contra os americanos, mas ainda assim o teste teve um devastador impacto psicológico.
Muito já foi tentado para barrar as aspirações atômicas da família Kim nas últimas duas décadas. Em 1994, os americanos pressionaram com sanções econômicas. O ex-presidente Jimmy Carter visitou Pyongyang e retornou com a promessa de um acordo. Desde então, as estratégias variaram em nome e abordagem, mas todas fracassaram. Por um tempo, a Coreia do Sul aplicou ao inimigo do norte a “política do raio de sol”, ofertando assistência econômica e tentando mudar a postura do regime. Recentemente os americanos apostaram na “paciência estratégica”, a aplicação de pressão e sanções enquanto esperavam o tirano aceitar sentar-se à mesa de negociações. Nada deu certo.
Desde que assumiu, o presidente Donald Trump vem tentando jogar para a China a responsabilidade de brecar os vizinhos, mas Pequim tem interesses próprios. Para os chineses, é importante garantir a zona-tampão, que hoje separa sua fronteira dos 30 000 militares americanos instalados na Coreia do Sul. Após o lançamento do míssil, os americanos engrossaram a voz, mas os chineses e os russos propuseram uma alternativa diplomática. Ela viria com o congelamento do programa nuclear norte-coreano e com a interrupção dos exercícios militares conjuntos de americanos e sul-coreanos na região. “O congelamento já foi tentado antes, e não funcionou porque a Coreia do Norte traiu o acordo, perseguindo secretamente outro caminho para desenvolver armas nucleares, com o uso do urânio”, diz Sung-Yoon Lee, professor de política internacional da Universidade de Tufts, nos Estados Unidos. O professor defende o reforço das sanções, que isolaram economicamente o país mas são repetidamente dribladas pelos norte-coreanos. “As sanções contra a Coreia do Norte não são tão duras como aquelas contra países como Irã, Síria e Cuba”, diz.
Se todas as opções para lidar com a Coreia do Norte são ruins, a pior delas é o uso da força militar. O problema é que um ataque inicial da parte americana dificilmente destruiria todas as armas escondidas e espalhadas pelo país e certamente geraria reação imediata. Pyongyang poderia usar a pesada artilharia convencional armada perto de Seul ou mísseis de variados alcances. O risco da escalada do conflito para o campo nuclear é real, mas assusta mais os americanos, sul-coreanos, chineses e japoneses do que o ditador da Coreia do Norte. Quanto mais armas ele tem, mais confiante fica em seguir com o programa nuclear. “O míssil (ICBM) é para dissuasão, não é ameaça. Queremos mandar uma mensagem aos Estados Unidos: queremos paz, mas não vamos implorar por ela. Com esse míssil, Trump não vai ousar atacar a Coreia do Norte”, afirma o espanhol Alejandro Cao de Benós, o ocidental com maior entrada em Pyongyang e que atua há anos facilitando contatos comerciais e políticos com o país. Escondido no discurso de Benós (que segue à risca o oficial) está o interesse de manter o regime de pé. Os norte-coreanos veem como mau exemplo o destino do líbio Muamar Kadafi, que, anos depois de abrir mão de seu arsenal nuclear, acabou deposto e linchado. Diz Steven Weber, professor de relações internacionais da Universidade da Califórnia em Berkeley: “Eles olham para o que aconteceu com Kadafi e pensam que um acordo não tem credibilidade”. Para o mundo, não há nada mais temerário do que um ditador amalucado com poderes nucleares.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2017, edição nº 2538