Sujo, malvado — e irresistível
Ryan Reynolds dobra as apostas em 'Deadpool 2' — e prova que sorte de principiante nada tem a ver com o sucesso do herói desbocado
Sorte é um superpoder? Deadpool (Ryan Reynolds) e Dominó (a ótima Zazie Beetz), potencial heroína que ele está entrevistando para uma vaga em sua força-tarefa, travam a esse respeito uma discussão longa, embora não propriamente rica em argumentos (“É sim”; “Não é não”). Estão ambos corretos: a sorte pouco significa se não é aplicada a algum propósito. Mas, quando se sabe o que fazer dela, pode se materializar, por exemplo, no sensacional azarão que é a série protagonizada pelo superanti-herói Deadpool. O canadense Ryan Reynolds teve a sorte de ter se dado mal duas vezes antes na pele de um personagem dos quadrinhos — em 2011, como o Lanterna Verde da DC, e em 2009, como o próprio Deadpool da Marvel, mas na versão higienizada e desvirtuada de X-Men Origens: Wolverine. Se tivesse tido o azar de experimentar êxito ainda que apenas moderado em qualquer uma dessas ocasiões, é bem provável que se houvesse dado por satisfeito. Inconformado com os dois fiascos, porém, ele empenhou a carreira na ideia de levar Deadpool à tela do jeitinho bagaceira que ele deveria ter tido desde sempre. Como o primeiro filme, de 2016, foi um arrasa-quarteirão (faturou 1 350% do seu orçamento enxutíssimo de 58 milhões de dólares), Deadpool 2 (Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, conseguiu algo ainda melhor do que mais dinheiro: ganhou o direito de continuar sendo como deve ser. Ou seja, sujo, desavergonhado, desbocado, ultraviolento, às vezes decididamente ultrajante — e irresistível. Desta vez, porém, menores de 18 anos vão ter de ficar na ignorância: uma rede brasileira de exibição já avisou que nem acompanhados dos pais eles poderão assistir à nova aventura do mascarado.
A prudência pode ser exagerada, mas é também compreensível. Deadpool começa o filme nadando em felicidade, mas é novamente puxado para o fundo do poço e reage com o seu abandono de sempre: fala pelos cotovelos, escracha tudo e todos e mata a torto e a direito, sempre com aquela sua criatividade singular (o diretor desta sequência, David Leitch, é um dos idealizadores de outro ícone da megaviolência cômica, a série John Wick, com Keanu Reeves).
O problema de Deadpool é que ele pode ser um cínico em todas as áreas da existência humana (ou mutante, no seu caso), exceto por aquela que tem a ver com o coração. Se mexem com sua namorada, a prostituta Vanessa (a brasileira Morena Baccarin), ele desmonta. E se maltratam um mutante órfão e gordinho que, destemperado pela adolescência, ateia fogo a tudo, ele se comove: para proteger o emocionalmente indefeso Russell (o neozelandês Julian Dennison, um arraso), Deadpool se dispõe a fazer até o que mais detesta, que é trabalhar em equipe. Daí a formação da sua força-tarefa — que não corre bem como o esperado — e a sua paciência para negociar com um nervosíssimo soldado vindo do futuro, Cable (Josh Brolin, bem mais intimidador e divertido que como o vilão Thanos de Vingadores — Guerra Infinita).
Com 119 minutos de duração, incluindo-se aí os hilariantes créditos iniciais e as deliciosas cenas pós-créditos, Deadpool 2 é uma espécie de paradoxo temporal: faz cada segundo contar (é possível, aliás, que ele contenha mais referências pop do que Jogador Nº 1, de Steven Spielberg, e mais ação que Vingadores), mas passa voando. Reynolds, que dois anos atrás se valeu até de rasteiras no estúdio para conseguir pôr seu bloco na rua, agora comanda a parada. Eletrifica o filme com sua energia, assina oficialmente como corroteirista — sua contribuição para os diálogos já havia sido decisiva no filme inaugural — e faz ainda melhor que da primeira vez. Prova, enfim, que, se sorte existe, a sua não era de principiante.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583