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Sombras de maio

Coluna publicada em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 18 Maio 2018, 06h00 - Publicado em 18 Maio 2018, 06h00

A primeira gravação de Chega de Saudade faz sessenta anos neste mês de maio. O maio de 1968 francês faz cinquenta anos. Salvo engano, foi Sérgio Cabral (o bom, o pai) quem chamou atenção para a convivência de dois humores opostos na letra de Chega de Saudade. A primeira parte é melancólica: “Vai, minha tristeza, / e diz a ela / que sem ela não pode ser…”. A segunda é de euforia: “Mas, se ela voltar, se ela voltar/ que coisa linda, que coisa louca / Pois há menos peixinhos a nadar no mar / do que os beijinhos que darei na sua boca…”. O maio francês descreve trajetória inversa à de Chega de Saudade. Começa com a inebriante proclamação de que a imaginação tomara o poder; conquista a adesão dos operários, põe 1 milhão nas ruas contra o autoritarismo e a caretice do regime do general De Gaulle — e desemboca na estrondosa vitória de De Gaulle (75% das cadeiras) nas eleições parlamentares de junho. A imaginação provou-se pouca, inconstante e incorpórea demais para manter-se no poder.

O maio deste 2018 no Brasil apresenta-se melancólico como a primeira parte de Chega de Saudade. A cinco meses da eleição, o panorama exibe duas peculiaridades ausentes em eleições anteriores. A primeira é: deve-se avaliar com cuidado se o candidato escolhido reúne condições de ir até o fim do mandato. Dos quatro presidentes eleitos desde a redemocratização, dois foram desapeados do cargo. É uma extravagância que causa trauma, deixa ressentimento e abala a ordem institucional. Quando se examinam os candidatos deste ano, não há exagero em dizer que vários, por motivos que vão do temperamento à falta de estruturas políticas e à vigilância da Justiça, arriscam não terminar o mandato.

A segunda peculiaridade é uma constatação: a eleição dos deputados, a quem caberá dar ou não sustentação ao presidente, e no limite derrubá-lo, afigura-se, com crescente clareza, como tão importante quanto a do presidente, se não mais. A escolha do deputado apresenta ao eleitor o desafio, primordial entre todos, de encontrar pessoas sérias. Não luminares, mas, singelamente, pessoas sérias. O desafio é gigante, dada a falta de semelhante artigo em oferta, e o sistema, em que miríades de pretendentes se oferecem, lutam para sobressair, confundem-se e ofuscam-se uns aos outros, não ajuda. O simulacro brasileiro, em anos recentes, de sonhar com a imaginação no poder, pode ter sido o junho de 2013. O choque de realidade chegou com o improvável governo Temer.

O panorama no Brasil apresenta-se melancólico como a primeira parte de Chega de Saudade

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A Primavera de Praga, outro evento de 1968, também cumpriu trajetória inversa à de Chega de Saudade. Em janeiro, Alexander Dubcek assumiu o comando do país, acenando com a reforma do carcomido regime comunista. Em agosto, 750 000 soldados, 6 500 tanques e 800 aviões do Pacto de Varsóvia acabaram com a festa. Era um alerta para que nunca mais se chamasse de “primavera” aos espasmos de liberação de regimes opressivos, e no entanto pespegou-se esse aziago nome ao ocorrido nos países árabes em 2011. Deu no que se sabe. O 1968 nos Estados Unidos traduziu-se por um atropelo entre a primeira e a segunda parte de Chega de Saudade. A estreia do musical Hair na Broadway e o assassinato de Martin Luther King ocorreram no mesmo mês de abril, antecedidos e sucedidos por manifestações em favor dos direitos dos negros e contra a Guerra do Vietnã. No Brasil, o gosto pela liberdade despertado pela agitação da juventude e pelas passeatas esboroou-se em dezembro com a ditadura descarada do Ato Institucional nº 5.

O LP que trazia Chega de Saudade em uma de suas faixas chamava-se Canção do Amor Demais e era estrelado pela já consagrada cantora Elizeth Cardoso. As novidades eram a dupla de compositores, Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, e o violonista que acompanhava Elizeth em algumas das faixas, João Gilberto. Por isso, entrou para a história como o marco zero da bossa nova. O marco 1 viria três meses depois, quando João Gilberto lançou Chega de Saudade em sua própria voz. Naquele maio de 1958 a bossa nova inseria-se no clima de confiança, até de euforia, reinante no país. Neste maio de 2018 João Gilberto é uma sombra que se esconde em desconhecidos endereços, vergada ao peso das dívidas e das desavenças familiares, em situação física e mental ignorada. Mesmo quando se trata de seu incomparável intérprete, a primeira parte de Chega de Saudade insiste em impor-se sobre a segunda.

Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583

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