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Coluna publicada em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 24 nov 2017, 06h00 - Publicado em 24 nov 2017, 06h00

AS COMEMORAÇÕES do centenário da Revolução Russa enfatizaram o fracasso do comunismo nos países em que ele exerceu o poder. Faltou conferir igual ênfase ao sucesso obtido nos países em que ele esteve fora do poder — sua capacidade de mobilização, os vultosos eleitorados que reuniu, sua atração sobre jovens de talento. Tome-se o caso do historiador francês Paul Veyne, um dos maiores especialistas em Antiguidade do nosso tempo. Em 1951, aos 21 anos, recém-­admitido na prestigiosa Escola Normal, ele ingressou, com direito à correspondente carteirinha de sócio, no Partido Comunista Francês (PCF). Seu entusiasmo era moderado. Veyne não acreditava nos “amanhãs que cantam” apregoados pelo poeta Aragon, ao descrever o glorioso advento do comunismo. Mas via no imperativo de ingressar no partido uma questão “de bem ou de mal, de moral, de altruísmo”.

Paul Veyne descreve sua adesão ao comunismo — com precisão e inteligência que valem para muito além das circunstâncias francesas — no livro de memórias que publicou em 2014*. Já circulavam as narrativas dos crimes de Stalin. O “paraíso socialista” da fábula dava lugar à realidade de uma tirania totalitária. No entanto, aderir ao comunismo, mesmo contra evidências que saltavam à vista, obedecia a um “valor moral”. Explica Veyne:

“Na verdade, a escolha de um valor é sempre individual (cada indivíduo faz sua escolha), mas, aos olhos desse indivíduo, essa escolha não é subjetiva como os gostos ou as cores; o valor de um objeto é sentido como pertencendo objetivamente a esse objeto, e não como vindo de mim. Quando aderimos a um valor (o altruísmo, a humanidade, o respeito à natureza), temos o sentimento de responder a um apelo desse objeto mesmo, de termos para com ele um dever de não indiferença, ainda que outros indivíduos, que fizeram uma outra escolha, não sintam nada disso”.

Tampouco os podres do PCF eram suficientes para afugentar os crentes. Maurice Thorez, o número 1 da agremiação, morava num apartamento de seis cômodos, e, quando sua esposa, Jeannette Vermeersch, foi questionada a respeito, respondeu: “Você queria que o secretário-­geral do nosso grande partido morasse num pardieiro?”. Certa vez o motorista de um alto funcionário do partido confidenciou a um grupo de alunos da Escola Normal que costumava levá-lo a encontros amorosos com a mulher de outra alta figura do partido. Em paralelo a tais diabruras vigorava a exigência de uma estrita moralidade sexual. Não se admitiam casais não casados. E quando, na “célula” de Veyne, se descobriu um homossexual, a reação foi (1) abafar o caso e (2) recomendar ao infeliz camarada “que se tratasse”.

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O PCF, com seu meio milhão de militantes e alguns milhões de eleitores, era o maior partido da França. Na Europa só tinha rival no Partido Comunista Italiano. Herdara a mística da Resistência, para a qual forneceu a maioria dos integrantes, e, num mundo traumatizado pelos 60 milhões de mortos da II Guerra Mundial, alardeava-se “no campo da paz”, contra os propósitos belicosos que atribuía aos Estados Unidos, então em guerra na Coreia. As duas superpotências tinham bombas nucleares, mas a bomba soviética, segundo a conveniente divisão entre os bons e os maus, era “a bomba da paz”.

O “paraíso socialista” desmoronava, mas aderir ao comunismo era “questão moral”

Enquanto permaneceu no partido (até 1956), Veyne abrigou uma “dúvida secreta”. Seria o PCF realmente o campeão dos desfavorecidos? “Em realidade”, escreve, “seu papel era o de atiçar, em benefício da União Soviética, o odioso ciúme da outrora grande França diante dos Estados Unidos.” Os mais lúcidos entre os comunistas franceses sabiam das perseguições, dos campos de trabalho forçado e das “autocríticas” arrancadas aos dissidentes na URSS, mas se esforçavam em não pensar nisso. Tampouco, segundo Veyne, se perguntavam se o comunismo era realmente “um bom meio de assegurar a prosperidade dos desfavorecidos”.

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Num daqueles dias, passando por Cannes, Veyne deu com a frota americana do Mediterrâneo ancorada no porto. “É preferível ver isso a ver encouraçados soviéticos”, comentou, provocando na irmã, que o acompanhava, um sorriso maroto. Escreve Veyne: “Eu contava com os Estados Unidos; era um comunista sob a proteção americana”. Sua reação revela uma das razões do sucesso do comunismo, na França, na Itália e em outros países. Que bom era ser comunista, desde que fora de um país comunista.

* Et dans l’éternité je ne m’ennuierai pas (E na eternidade não me entediarei), sem tradução em português.

Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558

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