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Respeito às mulheres

Escancarado por denúncias de famosas, o abuso sexual saiu da sombra. Agora é hora de tomar medidas para que deixe de acontecer

Por Da redação
Atualizado em 22 dez 2017, 06h00 - Publicado em 22 dez 2017, 06h00

De tempos em tempos, alguma poderosa mobilização popular modifica a forma como o sexo é tratado na sociedade, com a criação de leis e estatutos e a implantação de mudanças culturais permanentes. Assim alteramos nossa maneira de ver a prevenção da gravidez, o sexo casual, o aborto, os gays, os transgêneros. Em um ensaio escrito trinta anos atrás, Pensando o Sexo, a antropóloga americana Gayle Rubin defendeu a tese de que essas viradas em geral acontecem quando a humanidade se sente à beira de um cataclismo além de seu controle e são uma espécie de catarse alternativa. Um movimento coletivo não impedirá uma guerra nuclear nem freará o aquecimento global, mas o sexo, ele sim, pode ser reconfigurado na sua dinâmica social. O mundo anda, de fato, convulsionado. E passamos por um daqueles instantes cruciais nas relações íntimas entre indivíduos. Entraremos em 2018 digerindo a nova e extraor­dinária percepção de que a batida cena do chefe que corre atrás da secretária em volta da mesa não tem graça alguma. É assédio sexual, e assédio sexual é coisa séria.

Este 2017 ficará para a história como o ano em que a represa do assédio sexual explodiu e o mundo como um todo, e os Estados Unidos em particular, submergiu numa enxurrada nunca vista de denúncias. “Feminismo” foi a palavra do ano do dicionário Merriam-Webster, e vítimas de abuso foram personalidades do ano da revista Time. “O movimento feminista inventou a expressão ‘momento do clique’ ”, diz a historiadora Barbara J. Berg. “Este é um ‘momento do clique’. Um grupo de mulheres conta a verdade sobre poderosos, não ouve como resposta que é melhor calar-se e, assim, estimula todas as demais a se manifestar.”

Foi com a exposição do todo-poderoso produtor de cinema Harvey Weinstein, de 65 anos, como um degenerado assediador serial, em 5 de outubro, que as comportas estouraram. Uma a uma, quase trinta mulheres até agora — atrizes como Angelina Jolie e Salma Hayek — escancararam em minúcias as humilhações a que foram submetidas pelo produtor, como as vezes em que ele apareceu nu, masturbou-se, exigiu sexo oral. A motoniveladora do #MeToo (eu também), movimento criado nas redes sociais e espalhado por 85 países, virou a caixa de ressonância de legiões de mulheres que sofreram abuso. Em dois meses e meio, a metralhadora antiabuso acionada pelo caso Weinstein — e reforçada pelos dedos apontados contra Kevin Spacey, Dustin Hoffman, Ben Affleck — detonou cargos e reputações de cerca de cinquenta figurões do cinema, da política e da imprensa, e o número continua subindo. “As mulheres que desencadearam o processo são importantes e famosas e falam de acontecimentos de décadas atrás. Elas conseguiram se livrar do peso do assédio quando se viram em posição superior”, analisa a sexóloga Marilene Vargas, pós-graduada pela Universidade de Boston.

Harvey Weinstein foi a pedra que rachou o vespeiro, mas o sentimento deu mostras de estar ganhando força em vários momentos. Um deles foi no Brasil, em abril: Susllem Tonani, figurinista da novela A Lei do Amor, da TV Globo, acusou o veterano ator José Mayer de atos e gestos inconvenientes nos bastidores das gravações. Seguiu-se um estrondo de indignação. Artistas vestiram a camiseta “Mexeu com uma, mexeu com todas”, a Globo encampou a causa e Mayer está na geladeira até hoje (a vítima não levou o caso à Justiça). Note-se que o mote aqui favoreceu a postura anônima, meio envergonhada, em comparação ao descarado “eu também” nascido nos Estados Unidos, onde a alma puritana impulsiona um corretismo exacerbado. Mais adiante, homens foram apontados, agredidos e presos por ejacular em mulheres em ônibus de São Paulo — ato repulsivo mas nada incomum. Mais de 100 denúncias contra abusos desse tipo chegaram à polícia desde então.

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Nos Estados Unidos, o ano começou com o dia seguinte ao da posse de Donald Trump tomado por grandes marchas de mulheres em protesto contra o presidente, que, em gravação antiga vazada na campanha, se gabara de “poder tudo” com as mulheres, inclusive apalpar partes imencionáveis (as tais partes foram mencionadas em alto e bom som nas manifestações). Um movimento em cadeia de denúncias de assédio afetou a direção de empresas, aniquilou a cúpula do canal conservador Fox News, abalou executivos do Vale do Silício. Deputados e senadores, apontados, renunciaram. Nas rodas de amigas, a pergunta agora é: “Quem foi seu Weinstein?”. Assédio sexual não é novidade. Pesquisas agrupadas em uma reportagem recente da CNN mostram que já sofreram assédio ou violência 86% das mulheres brasileiras, 65% das americanas, 64% das britânicas. O que faz a diferença agora é a dimensão que tomou o ato torpe de um homem desrespeitar uma mulher e seguir em frente como se nada houvesse acontecido. Passado o primeiro e trepidante efeito das denúncias em série, a sociedade tem pela frente a discussão de aspectos ainda pouco citados quando a questão é assédio. Um deles: o alcance da percepção. “Sou fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas”, disse José Mayer em carta de desculpas. Apalpadelas e insinuações sempre foram praticadas sem que homens ou mulheres identificassem na impertinência o que ela verdadeiramente é — um ato de violência. Outro ponto em aberto: a escala do erro. É preciso pontuar o grau de abuso e condená-lo (condenável, sempre é) na medida. A régua tem de ser diferente para Weinstein, o tarado que mais de uma vez desceu ao estupro, e para Mayer, o garanhão dos camarins.

Como sempre acontece nos movimentos em ondas, a legislação se adapta aos novos tempos — tempos em que já não se admite o uso de belos corpos femininos como objeto de consumo na propaganda, sobretudo de cerveja, um estímulo ao machismo (e, não por acaso, a Skol lançou uma campanha redesenhando antigos anúncios). No Brasil, a Lei do Estupro, muito abrangente em casos de violência, dificulta a punição do assédio, em que a pressão psicológica, mais que a física, pode ser determinante. O Ministério Público organiza grupos de discussão para apressar a tramitação na Câmara de um projeto de lei da senadora Marta Suplicy que prevê prisão de três a seis anos a quem “constranger ou molestar alguém à prática de ato libidinoso diverso do estupro” — ou seja, assédio. Triste curiosidade: em São Paulo, os assediadores, enquadrados no artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, estão sujeitos a multa “de duzentos mil-réis a dois contos de réis”. A lei é de 1941.

Nos Estados Unidos, motor das transformações, o Congresso instituiu treinamento obrigatório antiassédio para senadores, deputados e suas equipes, e o Senado se prepara para encaminhar um projeto de lei que restringe a férrea cláusula dos contratos de trabalho que proíbe funcionários de processar superiores. Escreveu certa vez a pensadora Susan Sontag: “Desde que o cristianismo estabeleceu o comportamento sexual como a raiz da virtude, o sexo se tornou um ‘caso especial’ na nossa cultura, evocando atitudes inconsistentes”.

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Agora é esperar que o movimento em prol do respeito às mulheres não recue e perca a avassaladora força de um ano fundamental, o de 2017, apesar dos sinais contraditórios. Houve denúncias de assédio, a mulher-objeto é coisa do passado, e, no entanto, o Brasil virou o ano com uma única mulher no ministério do presidente Michel Temer — Luislinda Valois, que estava na corda bamba —, um cenário que se imaginava superado. E há o risco de aprovação no Congresso, em 2018, de uma PEC, proposta por um deputado do DEM, que criminaliza o aborto mesmo em casos de estupro, de gestação de alto risco e de fetos anencéfalos. Seria um absurdo retrocesso numa legislação que já tem 77 anos.

Colaborou Maria Clara Vieira

Publicado em VEJA de 27 de dezembro de 2017, edição nº 2562

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