Respeito ao diferente
No Brasil, pessoas de todas as classes sociais parecem esquecer que a discordância é parte natural — e intrínseca — do jogo democrático
O Brasil atual virou um terreno fértil para a intolerância, lugar onde quebrar placas que homenageiam adversários políticos assassinados ou destruir obras de uma exposição de arte são atos encarados com certa naturalidade, visto que nada acontece com seus autores. A última façanha às avessas nesse campo foi protagonizada por um até então obscuro deputado federal, Coronel Tadeu, representante do PSL de São Paulo e membro da chamada bancada da bala. Revoltado com a charge que retratava um policial que acabara de matar um jovem afrodescendente algemado, o parlamentar arrancou da parede, rasgou e pisoteou o trabalho, que fazia parte de uma mostra da Câmara para o Dia da Consciência Negra. Confiante na impunidade de sua ação e na boa repercussão que teria em sua claque, ele gravou o ato e postou as vexaminosas imagens nas redes sociais. Em sua defesa, Coronel Tadeu disse que o desenho era “nitidamente ofensivo aos policiais”, sua corporação de origem.
Existem, evidentemente, números contundentes para justificar a ilustração feita pelo cartunista Carlos Latuff. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75% das pessoas mortas por policiais militares entre 2017 e 2018 eram negras. Isso não significa necessariamente que toda a atividade dos agentes e oficiais seja permeada de discriminação racial — até porque um contingente importante deles tem pele parda. O debate é muito mais complexo, passando também por dados socioeconômicos e falta de treinamento das forças de segurança. Mas a questão maior por trás do episódio não é a discussão sobre a defesa da polícia, a existência de criminosos de farda ou o (suposto) racismo do deputado. Sem entrar no debate em si, o que choca na história toda é a banalização de uma reação destemperada e autoritária. Insatisfeito com o que considerou uma afronta aos colegas de corporação, Coronel Tadeu tomou a atitude daqueles que não toleram um pensamento contrário ao seu: eliminou o “foco de oposição”.
Infelizmente, tal desatino tem se repetido com frequência cada vez maior no Brasil. Pessoas de todas as classes sociais e atividades profissionais parecem esquecer que a discordância é parte natural — e intrínseca — do jogo democrático. Por isso, atos que não respeitam essa dinâmica, como o do parlamentar do PSL, precisam ser denunciados e punidos. Afinal, o que começa hoje como um simples gesto de intempestividade pode ser uma ameaça mais adiante à democracia. Causam muita preocupação, por exemplo, as ideias apregoadas por deputados, movimentos e até “jornalistas” de fechamento do Supremo Tribunal Federal ou intervenção do órgão. Há tempos o STF é vítima de uma campanha ininterrupta nas redes e nas ruas. Nas manifestações a favor do governo, jogam-se tomates em fotos de seus ministros. Na internet, produzem-se centenas de memes, ironizando a Corte. Enquanto a oposição permanecer no terreno da crítica, tudo bem. Ninguém é obrigado a concordar calado com 100% das decisões do Supremo (VEJA, aliás, não concorda com todas elas). No entanto, é fundamental, como manda a Constituição, defender a liberdade do STF para que tome suas decisões — e respeitá-las quando elas são anunciadas.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662