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Raízes do Brasil

Livro explica por que o sistema político do Brasil foi feito sob medida para aproximar empresários corruptos e políticos igualmente corruptos

Por Edoardo Ghirotto
Atualizado em 30 jul 2020, 20h15 - Publicado em 13 jul 2018, 06h00

Ao longo dos seus quase cinco anos de existência, a Operação Lava-Jato revelou que um restrito grupo de empresários, aliado a um restrito grupo de políticos, saqueou os cofres públicos em prol de seu respectivo enriquecimento, sendo que, em alguns casos, o impulso dos padrinhos foi tamanho que grupos empresariais subiram vertiginosamente, a ponto de alcançar o olimpo da liderança mundial em seu setor. Na outra ponta, a gratidão dos beneficiados, expressa em muitos milhões de reais (via caixa um, dois e três), permitiu ao pequeno grupo de políticos uma sólida, longeva e confortável permanência no poder. Nessa sociedade informal, por muito tempo, o céu foi o limite.

Dita assim, a história parece até singela. Mas é apenas a parte conhecida de um enredo assustador que há décadas se desenrola silenciosamente nos subterrâneos da República. Um levantamento do economista Bruno Carazza lança, pela primeira vez, uma luz meridiana sobre esses porões. Em 2012, o economista, funcionário do Ministério da Fazenda desde 2002, decidiu estudar as fundações do emaranhado de escândalos de corrupção registrados no Brasil nas últimas décadas. Para isso, mergulhou por seis anos num conjunto colossal de dados que, reunidos no livro Dinheiro, Eleições e Poder (Companhia das Letras, 2018), formam o mais completo inventário das causas e consequências da roubalheira generalizada que tomou conta do país.

Por meio do cruzamento de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com informações obtidas em milhares de tabelas fornecidas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, o pesquisador descobriu, por exemplo, que não mais do que 450 empresas e 33 indivíduos doaram um montante superior a 60% do total arrecadado por todos os candidatos e partidos na eleição de 2014. Uma vez que o universo de pessoas jurídicas registradas no país é da ordem de 5,4 milhões, conclui-se que a atual elite política brasileira foi alçada ao poder com a fundamental ajuda de um segmento da elite econômica nacional, formada por 0,008% dos empresários do país — que cobraram caro a contrapartida.

“Nosso presidencialismo de coalizão atribuiu superpoderes ao presidente da República. E um deles é a competência não apenas para executar programas governamentais e políticas públicas, mas também para legislar sobre um extenso rol de assuntos”

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Carazza aponta razões que explicam a ânsia do empresariado pela proximidade com os políticos e a disposição desses últimos em servi-lo. A primeira é o modelo de eleição legislativa em sistema proporcional. Ele define que a quantidade de votos recebidos por um partido ou coligação é mais relevante para apontar o vencedor do que os votos diretos que cada candidato obteve. Essa dinâmica estimula o surgimento de um grande número de candidaturas em grandes coligações, todas concorrendo entre si e famintas por dinheiro para financiar suas campanhas — uma necessidade, até 2015, quase completamente coberta pelos empresários. Eleitos, os ávidos candidatos se transformam em poderosas excelências.

PONTO DE PARTIDA – Por causa do uso indiscriminado de MPs, presidentes legislam mais que o Congresso (Evaristo Sá/AFP)
(Arte/VEJA)

Num sistema em que partidos de situação se apoderam de órgãos estatais, loteiam cargos comissionados e são responsáveis por criar leis capazes de fazer empresas ganhar e perder dinheiro, ter um mandato significa muito. E colaborar para a conquista desse mandato também. Se ele for presidencial, tanto melhor. Como revela Carazza em seu livro, 66% das leis criadas nas últimas duas décadas no Brasil foram editadas pelo Poder Executivo — boa parte delas por meio de medida provisória. Já no âmbito do Legislativo, é particularmente importante para empresários desonestos ter no bolso deputados e senadores responsáveis por, na tramitação das MPs, propor emendas capazes de favorecer a eles ou ao seu setor. Na famosa MP dos Portos, editada em 2015, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, hoje inquilino do complexo penal de Pinhais, conseguiu, com a redação e inclusão de um único artigo, avalizar a renovação da concessão do grupo Libra no Porto de Santos, mesmo sendo a empresa devedora de 2 bilhões de reais ao governo — antes da MP, a operação seria vedada por lei.

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Carazza descobriu ainda que, entre 2003 e 2014, dos autores das quase 4 000 emendas que beneficiavam claramente um setor específico, 55% receberam doações precisamente de empresas favorecidas pelas mudanças. Já entre os relatores das MPs que davam vantagens a setores específicos, 54% receberam doações das companhias beneficiadas. É uma troca. O senador Romero Jucá, freguês da Lava-Jato em pelo menos cinco ações penais e conhecido nos corredores do Congresso como “o resolvedor-geral da República”, foi, de longe, o político que mais relatou medidas provisórias na história do país: 73. O segundo lugar é ocupado por Romeu Tuma. Morto em 2010, o ex-delegado relatou apenas quinze MPs.

NÃO POR COINCIDÊNCIA – Jucá: recordista de MPs e citações na Lava-Jato (Cristiano Mariz/VEJA)

Os números levantados por Carazza apontam ainda um terceiro motivo que ajuda a explicar a simbiose entre políticos desonestos e empresários gananciosos no Brasil: o tamanho do Estado na economia. Empresários querem estar próximos do governo porque o governo está em todos os lugares — dos bancos estatais às obras de infraestrutura, passando pelo generoso Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pelos fundos de pensão de empresas públicas que investem o dinheiro de seus cotistas no setor privado. Só o BNDES desembolsou mais de 1,5 trilhão de reais em crédito subsidiado nas últimas duas décadas. Parte desse valor foi direcionado a obras das empresas de Eike Batista, ex-bilionário hoje condenado a trinta anos de prisão. A Justiça comprovou que Eike depositou 16,5 milhões de dólares no exterior em favor do ex-governador Sérgio Cabral como pagamento pela ajuda recebida na obtenção de licenças para obras de suas empresas no Rio de Janeiro.

(Arte/VEJA)

Evidentemente, as doações eleitorais de empresários em troca de benefícios vindos do setor público não surgiram ontem no Brasil. Emilio Odebrecht, patriarca do grupo de mesmo nome, revelou em sua delação premiada que o dinheiro dado aos políticos, por dentro e por fora, era praxe já na época de seu pai, Norberto (1920-2014), fundador da empreiteira. O que os números de Carazza detalham é a proporção inédita que a prática atingiu. A própria Lava-Jato mostrou que, na forma, a promiscuidade entre empresas e políticos não mudou nas últimas décadas. O que mudou foram as cifras — exponencialmente anabolizadas depois da chegada do PT à Presidência da República, em 2002. O chamado “preço do voto” (resultado da divisão do dinheiro arrecadado pelo candidato pelo número de votos que ele teve), por exemplo, explodiu entre 2002 e 2014. Para a Presidência da República, o custo do voto passou de 2 reais para quase 11. As candidaturas a deputado federal e estadual mais “caras” estavam entre 6 e 7 reais em 2002. Ultrapassaram os 14 reais doze anos depois. Essa explosão também pode ser observada quando se compara o total arrecadado legalmente em campanhas em 1994 e 1998 (menos de 1 bilhão de reais em cada ano) com as cifras de 2002 (quase 2 bilhões de reais). Em 2014, período em que a máquina de distribuição de caixa dois funcionava a todo o vapor, quase 5 bilhões foram depositados legalmente em todas as candidaturas.

“(Romero Jucá) é, disparado, o parlamentar que deteve o maior número de relatorias sob sua responsabilidade — o que explica, também, por que é apontado em várias delações como um personagem central do suposto esquema de corrupção do MDB no Congresso”

Diante das descobertas da Lava-Jato, que revelaram cerca de 40 bilhões de reais desviados dos cofres públicos por meio de esquemas corruptos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2015, pôr um ponto-final nas doações privadas. O resultado, visto nas eleições municipais do ano seguinte, foi a predominância, entre os vitoriosos, de políticos ricos, capazes de financiar a própria campanha. A partir deste ano, a quase totalidade do dinheiro para financiamentos de campanha virá dos cofres públicos — o chamado fundo eleitoral, criado pelos próprios parlamentares no apagar das luzes de 2017. Ele servirá para bancar as cifras que não poderão mais ser depositadas por empresas (leia o artigo da seção Página Aberta, na pág. 58).

DE LONGE - Marcelo Odebrecht não criou a propina, mas ela cresceu na gestão PT (Paulo Lisboa/Folhapress)

“Não mais do que 33 pessoas e 450 empresas foram responsáveis por três quartos do total de recursos arrecadados para financiar todas as campanhas de todos os cargos em disputa no país em 2014”

(Arte/VEJA)

Em nenhuma democracia bem resolvida as coisas funcionam assim. Países como Inglaterra, Estados Unidos e Holanda conseguem manter o funcionamento correto de suas instituições num sistema em que a colocação de dinheiro privado em candidaturas políticas é permitida sem restrições. Carazza explica que, no quesito “vedação total” de doações de empresas e teto flexível para pessoas físicas, o Brasil se assemelha a nações como Honduras, Libéria e Filipinas. O autor não acredita que o fundo eleitoral vá dissolver a atração incorrigível entre políticos e empresários corruptos. Limitar os gastos de campanha, para que elas sejam obrigatoriamente baratas, extinguir partidos de aluguel e tirar de caciques a prerrogativa de distribuir o fundo partidário podem ser alternativas mais eficazes, em sua avaliação. Como os únicos aptos a empreender tais mudanças são os próprios políticos, resta ao eleitor dar a canetada final nessas eleições.


“O jogo favorece o país velho”

DINHEIRO E PODER – Bruno Carazza: seis anos de pesquisa (Leo Drumond/NITRO/Divulgação)

O senhor diz que o sistema político brasileiro se baseia em um ciclo no qual as elites econômicas e políticas se retroalimentam. É possível haver uma renovação neste ano? Estou pessimista. A situação é muito confortável para a casta política atual. O volume de dinheiro que os grandes partidos ganharão com o novo fundo eleitoral é alto e favorece a continuidade, não a renovação. O jogo é favorável para o Brasil velho.

O senhor defende a troca do modelo presidencialista? Todo problema complexo tem uma resposta simples e, em geral, errada. O que temos de fazer é encarar o duro trabalho de reformas e persistir para que o presidencialismo de coalizão não seja de cooptação.

Por que o senhor critica a proibição de doações eleitorais de empresas? Entendo que esse veto era um clamor da sociedade que foi atendido pelo STF em uma decisão pouco embasada. Mas uma forma de melhorar a medida seria estabelecer tetos nominais baixos para doações de pessoas físicas, jurídicas e de candidatos. O me­lhor sinal de vigor de uma democracia se dá quando um eleitor é convencido a tirar do próprio bolso uma quantia para custear uma campanha. Num país democrático, partidos não podem depender de financiamento público.

Houve um caso determinante para que o senhor iniciasse as investigações que resultaram no livro? Eu trabalhava na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda quando, em meio à discussão da Lei de Falências, vi duas cabeças coroadas de partidos antagônicos — PT e PSDB — falando sobre a necessidade de enviar o projeto a um lobista de um poderoso grupo de comunicação, que prefiro não identificar. Esse caso me estimulou a pesquisar como e por que alguns agentes econômicos conseguem privilégios e acesso diferenciado aos agentes políticos.

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Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591

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