Com o anúncio da possível privatização da Eletrobras e de várias outras estatais, o Brasil retoma com mais força o debate sobre os prós e os contras de manter empresas controladas pelo governo. Nessa discussão, como sempre, as ideologias ofuscam a boa análise. Por exemplo, reagindo à notícia da privatização da Eletrobras, Dilma Rousseff tuitou que vender a companhia “é abrir mão da segurança energética”. Por certo, segurança não foi exatamente o que o seu desastroso modelo intervencionista trouxe ao setor. Mas a afirmação padece de uma falha ainda mais básica: gestão estatal não é a única forma de garantir serviços de interesse público. Aqui vale citar um grande economista, Ronald Coase, ganhador do Prêmio Nobel de 1991. Coase costumava derrubar falsas crenças a partir de disciplinada análise do que acontecia no mundo real. Em um artigo publicado em 1974, examinou a provisão de serviços de faróis marítimos na Inglaterra. Um farol tem clara feição de bem público: embora sua luz seja essencial para garantir uma navegação segura, não é possível cobrar seletivamente pelo serviço. A luz é vista por todos. Por isso, muitos tratados de economia diziam que os faróis deveriam ser providos pelo Estado. A surpresa: Coase mostrou que os faróis eram historicamente geridos e financiados por atores privados.
Em nenhum momento no artigo, porém, Coase faz defesa ideológica da privatização. Para ele, o crucial é entender os arranjos contratuais que suportam a boa entrega do serviço. A volta das privatizações ao debate público é bem-vinda, mas a sua execução não deve acontecer sem que se considerem condições regulatórias mínimas que garantam serviços de qualidade e estimulem novos investimentos. Tampouco podemos repetir a velha prática de “privatizar” empresas com generosos recursos públicos destinados a meia dúzia de grupos bem conectados. Por isso, é preciso pensar em um grande número de questões paralelas, desde como será o modelo de venda das empresas até quem vai regular a atividade sob controle privado. Vale lembrar que as desastrosas intervenções do governo passado não somente causaram descontrole de gastos como enfraqueceram a ação independente das agências reguladoras. A venda das estatais deve complementar, e não substituir, reformas de ajuste fiscal e reforço das instituições de controle.
Mas aqui surge um efeito curioso. À medida que um país desenvolve melhor as regras do jogo, os governantes têm menos capacidade de acionar a máquina pública em benefício próprio. Agências reguladoras fortes impedem que as estatais distorçam os mercados para fins populistas, ao passo que o aparato de investigação e controle coíbe práticas corruptas. Como consequência, as estatais tendem a ser mais bem geridas e menos sujeitas a interferência política. Ironicamente, quem defende a propriedade estatal deveria denunciar os desmandos da gestão passada e lutar pelo aprimoramento das nossas instituições. Jogando luz no problema certo, as ideologias ficam menos em conflito do que elas próprias querem parecer.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546