Prata da casa
A publicação, no Brasil, do poeta sueco Tomas Tranströmer, levanta a questão: por que o prêmio é tão importante?
O sueco Tomas Tranströmer (1931-2015), apesar da brevidade de sua obra, é reconhecido como um dos melhores poetas europeus das últimas décadas. Mas se finalmente uma amostra de sua poesia, traduzida do idioma original, chega ao Brasil, isso se deve sobretudo ao fato de ele ter sido laureado em 2011 com um prêmio também sueco, o Nobel de Literatura. Concedido pela Academia Sueca desde o começo do século passado, o Nobel, que inclui um cheque polpudo com o equivalente a mais de 3 milhões de reais, tornou-se há muito o prêmio mais prestigioso e cobiçado do planeta. Ganhá-lo não é apenas uma questão de vaidade ou dinheiro. Para autores que escrevem em línguas menores ou não centrais — um português como José Saramago ou um japonês como Kenzaburo Oe —, a passagem por Estocolmo pode ser também o atalho rumo às editoras anglo-americanas, francesas, alemãs.
Como e por que uma honraria decidida por um conjunto de obscuros acadêmicos de um pequeno país cuja literatura e cultura em geral mal são conhecidas fora da Escandinávia se transformou no santo graal da literatura moderna? Por que um escritor de primeira como Jorge Luis Borges precisaria ser reconhecido por um grupinho de pequenas celebridades locais cujas obras somadas contam menos que qualquer livro do mestre argentino? Decerto não pelo acerto de suas escolhas (ou das de seus predecessores), já que, começando pelo justamente esquecido bardo francês Sully Prudhomme em 1901 e chegando no ano passado ao relativamente trivial Kazuo Ishiguro, os literatos suecos premiaram mais irrelevâncias ou obviedades do que gênios. A lista de omissões começa por Tolstói e Tchekhov e chega até o recém-falecido Philip Roth.
Talvez a melhor explicação para a importância que o prêmio ganhou seja a seguinte: as demais categorias do Nobel são quase todas científicas, e em ciência a avaliação é muito mais objetiva do que no terreno artístico. Quem poria em dúvida a escolha de Erwin Schrödinger ou Watson e Crick? Que a “mesma” distinção seja dada a Einstein e Bob Dylan, a Niels Bohr e Toni Morrison, cria a impressão de que, de alguma forma, pode-se avaliar a cultura com distanciamento e profissionalismo científicos, e de que o prêmio resulta do juízo racional, não de um conjunto aleatório e negociado de opiniões medianas. Além disso, o fato de que os jurados sejam uma dúzia e meia de obscuros escandinavos, burocratas kafkianos numa instituição borgiana, dá, paradoxalmente, mais credibilidade a seu julgamento coletivo, anônimo e quase sempre envolto em mistério. E que a augusta academia, como Hollywood, tenha sido sacudida por escândalos sexuais não é bom para tal mistério. Jean-Claude Arnault, um fotógrafo de origem francesa, marido de Katarina Frostenson, poeta e acadêmica sueca, foi acusado de assédio sexual por dezoito mulheres — e também de se beneficiar de verbas da academia para promover seu clube cultural. Desde então, renunciaram oito acadêmicos. A premiação deste ano foi suspensa, e será compensada com a concessão de dois prêmios em 2019.
Nem por isso se deve ver nada de suspeito na premiação de Tranströmer, cuja reputação já estava mais que consolidada quando ele foi laureado. Sua obra, difícil de caracterizar, relaciona-se de perto com uma longa tradição de poesia sueca ligada à natureza, uma herança óbvia do romantismo europeu que no norte do continente ganhou características tão individualizadas quanto as da própria paisagem local. O olho para o mundo natural e mesmo urbano é uma marca de sua poesia, mas outra é o controle claro do que faz com isso, a precisão com que metaforiza os objetos que vê, correlacionando-os seja com sua interioridade, seja com sua reflexão peculiar, sempre seca, nunca sentimental ou piegas. Desde o princípio, sua escrita patenteava a maestria formal, como a de seus famosos 17 Poemas de estreia, nos quais ele usa metros complexos com uma destreza que o poeta e romancista Lars Gustafsson assegura ser digna dos greco-latinos da Antiguidade, como Horácio. Que sua poesia chegue à nossa língua e país é, sem dúvida, uma boa notícia. Mares do Leste inclui, além do ciclo de poemas que lhe dá título — o mais longo e mais importante que Tranströmer escreveu —, os versos comoventes que o autor compôs depois do derrame que o deixou hemiplégico e afásico. A tradutora anuncia que continuará a trabalhar no restante da obra do Nobel sueco. A presente versão de Mares do Leste, porém, ainda não alcançou em nossa língua um grau de realização e fluência à altura da reputação do autor — ou comparável, mesmo em termos de inteligibilidade, às versões para outras línguas ou para o português lusitano. Se a tradutora quer de fato convencer os leitores da grandeza do poeta, terá de buscar uma linguagem mais precisa e mais apta a acolher Tranströmer em nosso vernáculo. O trabalho de tradução é exigente, interminável, e Tomas Tranströmer está seguramente entre os poetas que merecem tal dedicação.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585