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Poderoso e paranoico

O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, manda prender rivais e reduz o poder dos clérigos wahabistas — e não vai parar por aí

Por Duda Teixeira e Luiza Queiroz
Atualizado em 10 nov 2017, 06h00 - Publicado em 10 nov 2017, 06h00

Os hóspedes do hotel Ritz-Carlton, em Riad, a capital da Arábia Saudita, receberam ligações na tarde do sábado 4 ordenando que arrumassem suas malas imediatamente. Todos foram remanejados para outros hotéis da cidade, sem que pudessem saber a razão da transferência. Naquele mesmo dia, os 492 quartos passaram a receber membros da monarquia saudita, a Casa de Saud, e funcionários do governo. O hotel estava sendo transformado em uma prisão de alto luxo. Entre os que foram levados para lá havia onze príncipes, inclusive Alwaleed bin Talal, um dos homens mais ricos do mundo. Guardas uniformizados e armados com rifles americanos foram acomodados em colchões espalhados em um dos salões de jantar e custodiaram os detidos durante seus interrogatórios. Nas ruas em volta, carros da polícia passaram a fazer rondas constantes.

A gigantesca operação, que chegou a encarcerar 500 pessoas, não tem precedente na história do país. Seus 15 000 príncipes, todos eles descendentes do fundador da Arábia Saudita, Ibn Saud, sempre foram tratados a pão de ló e muitos petrodólares. Sem que fossem divulgadas acusações formais, os detidos foram levados para o hotel sob a justificativa de que estavam sendo investigados por corrupção. A ordem teria partido de um comitê especial, criado horas antes, que tem o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman em seu comando.

(Arte/VEJA)

Conhecido pela sigla MBS, o príncipe herdeiro é o arquiteto do expurgo real. Como seu pai, o rei Salman, está com 81 anos e sofre de lapsos de memória, o jovem MBS, de 32 anos, é quem manda no reino. Ele só assumiu sua atual posição em junho, depois de passar a perna em seu primo Mohammed bin Nayef. Neste ano, Nayef foi acusado de fazer uso excessivo de opioides e de outras drogas e colocado em prisão domiciliar (desde 2009, quando sobreviveu a um atentado cometido por um terrorista que inseriu uma bomba no ânus, ele sofre de stress pós-traumático). Inseguro no cargo recém-conquistado e tendo de se afirmar para a população e para a elite nacional, MBS tem afastado rivais e acumulado cargos de chefia em alta velocidade. Em seu avanço frenético, ele poderá não apenas mudar o modo de vida na Arábia Saudita como empurrar o Oriente Médio para um caos ainda maior.

Aqueles que o conhecem pessoalmente dizem que é impulsivo e se irrita quando criticado. Não escuta ninguém. Contrariando o costume da família real de levar os jovens a estudar no exterior, MBS graduou-se em direito por uma universidade saudita (prisões em massa e num hotel de luxo já dão uma mostra de quanto aprendeu de direito penal). Ele mal fala o inglês. No governo, criou um órgão dedicado exclusivamente a elogiá-lo, falar bem de suas iniciativas e corromper jornalistas. Paranoico, MBS unificou vários braços das forças de segurança que normalmente eram distribuídos entre as diversas tribos integrantes da família real: a Guarda Nacional, o Ministério do Interior, as Forças Armadas, a patrulha de fronteira e os serviços de inteligência. “Ele agora controla todas as alas coercitivas do Estado. Se existia alguma ameaça contra ele, é de supor que já tenha sido neutralizada”, diz Chas Freeman, que foi embaixador dos Estados Unidos na Arábia Saudita e é professor da Universidade Brown.

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Não há no passado recente da Arábia Saudita alguém que tenha esbanjado tanta força. MBS avançou até mesmo contra os clérigos muçulmanos wahabistas, uma das correntes mais radicais do islamismo sunita. Foram eles que cimentaram a unificação dos reinos na Península Arábica nos anos 1930 e permitiram o controle da sociedade desde então. Por ser novo, MBS faz coro com os que têm até 30 anos, cerca de dois terços da população. Para eles, os clérigos sunitas são antiquados e distantes da realidade. Em declarações públicas, MBS afirma que seu país deve praticar o Islã moderado e a­­brir-se para todas as religiões do mundo.

Para os que não gostam dele, não há saída. Em setembro, MBS mandou deter vários críticos, inclusive religiosos e defensores dos direitos humanos. Em seguida, decretou que a partir do ano que vem as mulheres poderão dirigir, irritando os conservadores. “Duvido que ele acabe com a aliança histórica com os clérigos, mas MBS está deixando claro que o Poder Executivo determinará a política sozinho, sem que nenhum líder religioso se intrometa”, diz Yezid Sayigh, pesquisador do Centro Carnegie do Oriente Médio, em Beirute. O príncipe também reduziu a ação da polícia religiosa, que percorria as ruas para garantir que os mandamentos islâmicos fossem cumpridos, e criou uma divisão de entretenimento cuja função será autorizar shows de comédia, campeonatos de luta e a abertura de cinemas.

Para além de suas fronteiras, o príncipe herdeiro também encarou as ameaças. Comprou briga com os rebeldes hutis do Iêmen, que são financiados e armados pelo Irã. No sábado 4, eles mandaram um míssil balístico em direção ao aeroporto de Riad. O projétil foi interceptado no ar, e funcionários do governo saudita acusaram a milícia xiita libanesa Hezbollah de ter colaborado no ataque. No mesmo dia, o primeiro-ministro libanês Saad Hariri, que também tem cidadania saudita, apareceu na televisão da Arábia Saudita para anunciar que estava renunciando ao cargo. Agindo provavelmente sob a pressão da monarquia de Riad, ele alegou que temia acabar como o pai, Rafik Hariri, morto em um atentado a bomba em Beirute, em 2005. Com o crescente envolvimento do Hezbollah na guerra da Síria, Hariri foi incapaz de impedir a ascensão política do grupo, o que desagradou aos sauditas.

MBS também tem participação de destaque na pressão que os países árabes sunitas fizeram em junho passado contra o Catar, um pequeno emirado acusado de financiar o Hezbollah. Em todas as suas aventuras externas, o príncipe herdeiro parece contar com o apoio americano. O ex-pr­esidente Barack Obama era criticado por ele por ter feito um acordo nuclear com o Irã. Mas Donald Trump tem aprovado a proeminência saudita e aplaudido o enfrentamento com os xiitas. Na semana passada, Trump telefonou para o rei Salman após os expurgos, gesto que foi interpretado como apoio tácito do americano à sua política.

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À parte ter de lidar com todos os inimigos internos e externos que ameaçam seu futuro reinado, MBS precisará conquistar o apoio da população, apesar das más perspectivas econômicas para o país. Desde que o primeiro poço de petróleo foi descoberto, por uma empresa californiana, em 1938, os sauditas criaram uma infraestrutura apropriada para explorar e exportar o óleo. As fortunas obtidas possibilitaram um padrão de vida luxuoso à família real. O dinheiro também poupou os habitantes de pagar imposto de renda e permitiu que eles vivessem com combustíveis, tarifas de energia e até comida a preços subsidiados. Com a queda do preço do barril em 2014, porém, o país passou a enfrentar sucessivos déficits fiscais.

A crescente oferta de fontes de energia alternativas fez o príncipe entender que o atual modelo econômico saudita não é viável a longo prazo. “Havia uma necessidade real de mudança na Arábia Saudita, e muitos a estão encarando como um processo de modernização”, diz Perry Cammack, economista do programa de Oriente Médio da Fundação Carnegie para a Paz Internacional. Entre as propostas do príncipe herdeiro, que é fã da ex-primeira-m­inistra inglesa Margaret Thatcher, estão cortar os subsídios públicos, privatizar empresas estatais, aumentar a participação feminina na força de trabalho para 30% e eliminar os bônus dados aos servidores públicos. MBS também já anunciou que pretende negociar uma pequena parte das ações da petroleira estatal Aramco na Bolsa de Nova York, no ano que vem. “O príncipe quer criar um modelo parecido com o dos Emirados Árabes Unidos, em que os cidadãos podem consumir e se divertir à vontade, embora não gozem de direitos políticos”, diz Stéphane Lacroix, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Science Po, em Paris. MBS está só começando.

Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556

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