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Pena na dose certa

A criação de um tipo penal intermediário entre o estupro e a contravenção é uma solução para punir agressores sexuais como os “ejaculadores de coletivos”

Por * Luiza Nagib Eluf
Atualizado em 13 out 2017, 06h00 - Publicado em 13 out 2017, 06h00

Há muito tempo que as mulheres vêm sendo desrespeitadas nos transportes coletivos. As vítimas não costumam reclamar por vergonha ou descrédito nas autoridades, que, quando acionadas, por vezes não tomam as providências necessárias. Já os responsáveis pelos metrôs e ônibus parecem estar empenhados em evitar as ocorrências, mas sem o suporte do Estado fica difícil.

Ressalte-se que o Código Penal, em seu artigo 213, diz que é estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Portanto, masturbar-se dentro de um ônibus e ejacular no pescoço de uma passageira, como aconteceu recentemente, consiste em ato libidinoso e está enquadrado na figura do estupro, que tem pena de seis a dez anos de reclusão, pois o sujeito que ejacula sobre a vítima o faz mediante violência caracterizada pela surpresa.

A jurisprudência admite que atingir a vítima de supetão é violência. A surpresa exclui a aceitação do ato e afasta o consentimento. Evidentemente, quem não pode consentir dissente. Mas, por incrível que possa parecer, alguns julgadores vêm interpretando a conduta de maneira diversa, enquadrando-a na contravenção de “importunação ofensiva ao pudor”, apenada com multa. Diz o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais: “Importunar alguém em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor — Pena: multa”.

Uma ejaculação sobre o pescoço e o rosto de alguém seria mera “importunação”? Importunar é fazer gracejos, olhar fixamente, obstruir a passagem, assobiar, mostrar-se ousado. Evidente que a classificação de “contravenção” nesse caso é um equívoco.

Em se tratando de estupro, a reprimenda é bem mais severa do que a contravenção, e, se a vítima for menor de 14 anos, a pena será de oito a quinze anos de reclusão. Conforme a redação da lei, qualquer conduta que envolva uma agressão sexual (ato libidinoso com violência) é estupro, crime hediondo. A pena é alta, mas é a lei. E é ilógico entender que nos episódios dos ônibus não houve violência moral e psicológica.

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Seria importante adequar nossos preceitos legais à modificação dos usos e costumes. A criação de um tipo penal intermediário entre a contravenção e o estupro iria solucionar a questão. Já se encontra no Congresso a sugestão de redação de tipificação de um novo crime, o molestamento sexual, que consistiria em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, fraude ou aproveitando-se de situação que dificulte a defesa da vítima, à prática de ato libidinoso diverso do estupro. Pena: prisão, de três a seis anos”. É claro que o artigo que se refere ao estupro (213 do CP) também deverá ser alterado para abranger apenas o ato sexual vaginal, anal ou oral praticado mediante violência, sem fazer nenhuma menção a “outros atos libidinosos”.

A persistir a distorção que vem ocorrendo, ficará consolidada a maior injustiça já praticada em massa em nosso país: as mulheres não têm o direito de ir e vir, de usar os transportes coletivos nem de sair às ruas com tranquilidade porque são reiteradamente desrespeitadas e agredidas sexualmente no espaço público. E são ofendidas porque são mulheres. Os homens não passam por essa violência de gênero. Os casos se multiplicam, mas parece que não são suficientes para convencer alguns aplicadores da lei a tomar providências realmente eficazes. Diante da impunidade, os “ejaculadores de coletivos” devem estar se sentindo estrelas nacionais, pois se tornaram destaques dos noticiários e muitos nem foram punidos corretamente.

Do outro lado dos fatos, precisaríamos conhecer melhor quem são esses agressores. Houve um que pediu para ser tratado, depois de dezessete ocorrências iguais, confessando não conseguir se controlar. No caso dele, havia um histórico de lesões cerebrais e uma suspeita de deficiência mental. Os pais do rapaz também se manifestaram nos meios de comunicação pedindo à Justiça que prendesse o filho e cuidasse de sua patologia. Diante de tantos apelos, inclusive das entidades defensoras dos direitos das mulheres, o rapaz acabou detido, mas somente após a 17ª agressão registrada! Não obstante, começaram a pipocar novas ocorrências semelhantes, em várias cidades. O que buscam esses indivíduos? Alguma notoriedade, talvez, a amenizar o anonimato geral a que somos submetidos no mundo superpopuloso? Ou firmar sua masculinidade na sociedade patriarcal, que exige do homem contínuas demonstrações de potência sexual?

Está clara a necessidade de mudar a legislação para que atenda adequadamente às ocorrências atentatórias à dignidade sexual, desprendendo-se da moral superada dos anos 1940, época em que o atual Código Penal foi escrito. É verdade que, em 2009, houve uma alteração legal que reformou o título “Dos Crimes contra os Costumes” e passou a chamá-los “Crimes contra a Dignidade Sexual”. Mas a atualização não foi suficiente. Foram mantidos alguns erros do passado. Quando se faz uma reforma legal, é preciso coragem. O legislador do século passado tinha vergonha de dar às coisas o nome que elas têm e usou termos confusos e obscuros para descrever as condutas que precisam ser reformados.

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Assim, denominações como “conjunção carnal”, que carregam critérios religiosos e reprovadores da sexualidade, devem ser substituídas por ato sexual vaginal, anal ou oral. Já os “outros atos libidinosos” constantes do artigo 213 devem ser realocados em novo artigo, com previsão de pena menor, conforme sugerido acima. Para os leigos, para as pessoas do povo, o que seriam “atos libidinosos”? Isso já foi pergunta de concurso para o Ministério Público há décadas, pois nem os técnicos sabem explicar os tais atos, mas a lei penal continua a usá-los. E não se pode definir uma coisa dizendo que ela não é outra coisa. Por exemplo: o que é um macaco? Macaco não é cobra nem sapo… Nessa toada, o “ato libidinoso” seria entendido como aquilo que “tem caráter sexual, mas não é conjunção carnal”… A resposta a essa difícil pergunta, que o candidato a promotor de Justiça não conseguiu oferecer, foi dada pelo próprio examinador, à época: ato libidinoso é o “desafogo à concupiscência”… Ahhhh, bom!!!

* Luiza Nagib Eluf é criminalista e procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo aposentada

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552

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