Pelo direito de queimar o filme
A associação dos juízes desafia a Constituição com greve — e magistrado do Ceará ajuda a piorar a imagem da Justiça ao humilhar e ameaçar uma advogada
Embora seja o poder mais bem avaliado pelos brasileiros, o Judiciário já viveu dias melhores. O mais recente Índice de Confiança na Justiça Brasileira, da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, registrou seu pior nível desde o início da sondagem, em 2009. No ano passado, apenas 24% dos entrevistados afirmaram acreditar na Justiça brasileira. É uma situação ruim, mas pode piorar — e, nos últimos dias, alguns juízes federais se empenharam para isso.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) estima que mais de 1 000 magistrados vão aderir à greve da categoria programada para a quinta-feira 15. A paralisação visa a pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a manter o auxílio-moradia — benefício que hoje contempla 17 447 juízes, incluindo os que têm casa própria na cidade em que trabalham. A greve por integrantes do Judiciário é vetada pela Constituição. O inciso 12 do artigo 93 deixa isso claro ao dizer que “a atividade jurisdicional será ininterrupta”. Mesmo férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau estão vetadas por lei. Mas, para o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, nem seria preciso um dispositivo tão explícito para revelar o despropósito da ação. “Um membro do Judiciário não pode entrar em greve, não pode bater em retirada, pois é como se o Estado em si estivesse saindo de campo.”
A única vez em que magistrados fizeram greve no Brasil foi em 2011. Na conta das associações, 5 000 juízes federais e trabalhistas pararam por um dia. Em 2000, por questões salariais, juízes federais prometeram uma greve nacional. Sem poder dar o reajuste, o então ministro da Justiça, Nelson Jobim, optou pela tática do “jeitinho”. Por meio de medida cautelar, garantiu o pagamento de um adicional de até 3 000 reais aos ministros do STF, benefício que foi estendido a todos os juízes pela própria Corte, no mesmo dia, a título de… auxílio-moradia. A greve, marcada para o dia seguinte, foi abortada. Agora, dezoito anos depois, a constitucionalidade do benefício será tema do STF. O julgamento deve acontecer no dia 22.
Se a paralisação dos magistrados produz mais um arranhão na imagem da Justiça, no Ceará um único juiz fez mais que isso com um discurso de apenas nove minutos. Em áudio divulgado pelo site Jota, especializado em assuntos jurídicos, Solón Mota Júnior, da 2ª Vara de Família de Fortaleza, humilha, insulta e ameaça de retaliação uma advogada que reclamou da demora no trâmite de um pedido de troca de guarda de duas crianças — uma das quais, de 1 ano, acabou morrendo em um acidente doméstico não esclarecido.
Desde novembro, a advogada Sabrina Veras, de 26 anos, pedia urgência na transferência da guarda das crianças para o pai, já que a mãe as negligenciava e espancava. A advogada afirma que só naquele mês tentou falar com o juiz dez vezes. Em todas as ocasiões, ouviu de suas assistentes que ele estava ocupado. Na véspera das férias do juiz, ela chegou a dizer que poderia esperar por ele até o fim do dia, já que o caso requeria urgência, mas, de novo, não foi atendida. Em dezembro, uma das crianças morreu de “asfixia por comida”, segundo o laudo médico — o inquérito que investiga a morte está sob sigilo de Justiça. As assessoras do juiz, então, acusaram a advogada Sabrina de ter espalhado que elas haviam “matado a menina”, o que a advogada nega. “Sei pouco sobre a morte, que ainda está sendo investigada. Mas, se houvesse uma tutela eficiente a tempo, essa criança talvez estivesse viva”, disse Sabrina a VEJA.
Em fevereiro, a advogada foi finalmente recebida pelo juiz Mota Júnior. Ela diz que, no momento em que tentou “explicar o processo”, o magistrado ordenou que se calasse. Em seguida, passou a criticar sua conduta profissional e dirigiu-lhe uma ameaça velada. Ela gravou a conversa. Diz o juiz: “Uma advogada, minha filha, que se envolve emocionalmente no processo é uma advogada desqualificada. O advogado dá uma assessoria técnica e somente. Você se queimou comigo. Lamento dizer, você está começando agora… Se queimou comigo. E vai se queimar com tantos quanto eu fale essa história”. Depois de acusar Sabrina de ter “tratado mal” suas assessoras, o juiz rebateu o argumento da advogada de que uma das crianças afirmou em vídeo que a mãe a espancava: “Uma criança de 4 anos tem discernimento? Vai interferir num posicionamento de um juiz?”. Sem nenhuma surpresa, a Associação Cearense dos Magistrados repudiou a conduta da advogada e manifestou apoio ao juiz.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573