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Papo-cabeça

Ao abordar o suicídio e os traumas causados pelo bullying, '13 Reasons Why' comprova a força de um filão: as histórias sobre jovens com problemas psíquicos

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 jun 2018, 06h00 - Publicado em 1 jun 2018, 06h00

No meio da noite, o jovem Clay Jensen (Dylan Min­nette) surge com a respiração ofegante, escoriações pelo corpo e o semblante transtornado. É compreensível: prisioneiro da obsessão por vingar a morte de Hannah Baker (Katherine Langford), Clay tem alucinações com o fantasma da colega, que cometeu suicídio após sofrer bullying e ser estuprada no colégio. Enfrenta outra ameaça nada ilusória: os mesmos abusadores acabaram de atentar contra sua vida. A cena da segunda temporada da série 13 Reasons Why é capaz de provocar identificação e calafrios em qualquer pessoa com filhos adolescentes. Na produção ficcional da Netflix, os pais de Clay reagem como pais zelosos do mundo real reagiriam: pedem que o filho cumpra a promessa de se abrir se estiver passando por turbulências. “Quando a casa pega fogo, você não conversa. Você sai correndo”, justifica-se Clay. Uma casa em chamas é uma metáfora perfeita da temática explorada com notável realismo das séries de TV à literatura, a dos transtornos psíquicos dos adolescentes.

As dores de ser jovem são um motor caro à ficção, e de caráter incrivelmente atemporal ao menos desde o advento do romantismo. Uma obra como Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), na qual o alemão Johann W. Goethe narra a história de um rapaz que perde a vontade de viver em virtude de uma desilusão amorosa, já tocava em peculiaridades da cabeça do adolescente hoje explicadas pela ciência, como as oscilações de humor. Como ensina a especialista Lidia Weber, da Universidade Federal do Paraná, o adolescente tem corpo de adulto, mas um cérebro em maturação: a região do córtex pré-frontal ainda está em desenvolvimento. “A região pré-frontal está ficando cheia de ideias, por assim dizer, e o adolescente, cheio de tédio, o que aumenta a probabilidade de comportamentos de risco e transtornos psiquiátricos”, diz Lidia.

A safra atual de histórias sobre adolescentes exibe um diferencial marcante: além de expressarem o sentimento de inadequação típico dessa fase da vida, elas se debruçam sobre transtornos bem definidos nos manuais de psiquiatria. As Vantagens de Ser Invisível — livro de Stephen Chbosky vertido num filme de 2012 — fala da depressão juvenil. O americano John Green lança luz sobre uma condição de que ele mesmo sofre — o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) — com a heroína hipocondríaca de seu mais recente romance, Tartarugas até Lá Embaixo. Ainda na literatura, seu conterrâneo Neal Shusterman traduz a mente de um adolescente com esquizofrenia no recém­-lançado O Fundo É Apenas o Começo — escrito, aliás, com conhecimento de causa. O autor é pai de um garoto com a doença. Na TV, o inventário clínico da mente adolescente vai da síndrome de Asperger na série Atypical, da Netflix, à psicopatia na comédia de humor negro inglesa The End of the F***ing World.

(Beth Dubber/Netflix)
TORMENTOS – O nerd Tyler (acima) e a traumatizada Jessica: patologias mentais e sociais (Beth Dubber/Netflix)

13 Reasons Why ocupa um lugar hors-concours. A série é um compêndio dos problemas psíquicos da juventude. Lá no começo da primeira temporada, ficava-se sabendo que o protagonista Clay tomara um medicamento chamado duloxetina em tempos anteriores aos fatos narrados — o que sugere que sofria de depressão. Suas conversas com o fantasminha de Hannah são, antes de tudo, uma hábil ferramenta dramatúrgica, mas deixam no ar indícios de esquizofrenia. Skye (Sosie Bacon), sua nova namorada, tem compulsão para se cortar e é diagnosticada com transtorno bipolar. Jessica (Alisha Boe) passa a ter sintomas de síndrome do pânico depois de ser vítima do mesmo garanhão estuprador que traumatizara Hannah. Nerd oprimido, o fotógrafo Tyler (Devin Druid) também vai pela trilha da depressão.

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Se a série causou controvérsia com sua abordagem do suicídio, a nova leva de episódios não faz por menos: redobra-se a aposta na crueza. Um estupro masculino é decupado com brutalidade; o horror dos assassinatos em massa em colégios assoma com violência. “Algumas cenas serão difíceis de ver. Mas acreditamos que falar sobre isso é melhor que o silêncio”, já declarou o roteirista Brian Yorkey. De fato, a hipocrisia é a pior opção na hora de tratar os tormentos dos jovens. Entretanto, como se verificou no debate sobre a cena do suicídio de Hannah, os especialistas veem com reservas a exposição dos adolescentes a imagens tão impactantes. “A ficção faz com que as pessoas conversem sobre esses temas difíceis na escola, em casa, com os amigos. Porém jovens perturbados deveriam assistir à série ao lado de algum familiar, para poderem conversar a respeito”, diz a psicóloga Diana Corso, autora do livro Adolescência em Cartaz. “É preciso falar de assuntos difíceis como suicídio e bullying na adolescência, e é possível utilizar a arte para isso. Mas devem ser tomados certos cuidados: na série, o suicídio surge com glamour e simplificam-se os determinantes comportamentais”, afirma Lidia Weber.

Escaldados com as críticas — ligas de pais americanos querem tirar a série do ar em razão das novas cenas fortes —, os produtores sacaram uma “vacina” contra seus excessos. A segunda temporada engata uma discussão sobre o papel de cada um — pais, amigos e professores — nos problemas. A discussão torna a nova temporada mais arrastada, e não a exime do pecado da simplificação. Mas ilumina um dado perturbador: outro tipo de patologia — o ambiente social sufocante — tem um peso imenso nos transtornos. Estes, muitas vezes, não dão sinal de alerta antes do pior. “Sempre estarei aqui para conversar” e “você é linda de qualquer jeito, filha” são frases recorrentes dos pais. Mas a mente adolescente é uma casa misteriosa.


Viagem às profundezas

PAI E FILHO – Shusterman (à dir.) e Brendan: retrato da esquizofrenia (//.)

O americano Neal Shusterman carrega, na vida real, a experiência de conviver com um jovem portador de transtorno mental: seu filho Brendan, de 29 anos, é esquizofrênico. “Vi um filho amado viajar até as profundezas da mente, sem nada poder fazer para impedir sua descida”, escreve o autor, com evidente emoção, no posfácio de seu novo romance. Embora seja uma obra de ficção, O Fundo É Apenas o Começo ilumina com precisão quase documental — e com o olhar carinhoso de um pai — a mente de um personagem que exibe a mesma condição de seu filho.

O FUNDO É APENAS O COMEÇO - de Neal Shusterman (tradução de Heloísa Leal; Valentina; 272 páginas; 39,90 reais) (//Divulgação)

Ganhador do prestigioso National Book Award e recém-lançado no Brasil, o romance mergulha na cabecinha delirante de Caden Bosch, adolescente de 15 anos que tem noção de sua doença — ainda que nunca enxergue o mundo por um prisma convencional. Sua linguagem reproduz a desestruturação psíquica típica dos esquizofrênicos: para ele, não há fronteira entre real e imaginário. “Meus pés estão em terreno sólido e seguro, mas isso é somente uma ilusão”, diz. Caden, a princípio, é um jovem integrado à vida social, mas certo dia o edifício da razão desmorona sob seus pés: ele não consegue mais se encaixar nos grupos da escola e seus desenhos perdem as formas. Tem pesadelos com uma tenebrosa cozinha branca e imagina-se a bordo de um navio pirata — que se descobre ser, na verdade, a clínica onde está internado.

Shusterman retrata os vários estágios da doença e como ela pode moldar não só a mente de um garoto, mas a mentalidade de toda a família, empenhada na sua remissão. Em tempo: depois de anos de tratamento, Brendan — que fez as ilustrações do livro — está bem. Segundo Shusterman, ele “encontrou seu pedacinho de céu e escapou gloriosamente das profundezas”.

Eduardo F. Filho

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585

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