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Papagaiadas

Coluna publicada em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 27 jul 2018, 07h00 - Publicado em 27 jul 2018, 07h00

Deu galo, desta vez. Na vez anterior deu águia, e antes havia dado leão. Parece jogo do bicho, mas o assunto, com perdão pela insistência, continua sendo Copa do Mundo. O galo, símbolo da França, figura na camisa da seleção campeã. Outros países podem não ter bichos na camisa, mas os ostentam em seus brasões nacionais ou na própria bandeira. A Alemanha, campeã de 2014, tem a águia no brasão — uma águia cujas asas terminam em pontas que lembram punhos, erguidos em triunfo como quem diz: “Sou a maior!”. A Espanha, campeã de 2010, embute na bandeira um leão rampante — o animal de pé, e com as patas dianteiras na posição de combate dos boxeurs.

Considerados os 32 países presentes à Copa da Rússia, sete (quase 20%) apresentam animais na bandeira. Um deles é a vice-campeã Croácia: uma das figurinhas acima do famoso tabuleiro vermelho e branco é uma cabra (Mestre Google informa: a cabra simboliza a região da Ístria). Outro, o mais divertido, é o México, que tem no centro da bandeira uma águia no ato de capturar uma cobra (Mestre Google: segundo a lenda, os astecas fundaram Tenoch­titlan, antecessora da Cidade do México, no lugar em que surpreenderam uma águia bicando uma cobra). Juntem-se os brasões nacionais e temos outros quinze países, entre os 32 da Copa, a acolher animais entre seus símbolos oficiais. A esses, acrescentam-se os símbolos informais, como o galo francês, o galo português e o urso russo. O resultado é um panorama em que a Copa do Mundo, e, por extensão, o próprio mundo, é uma selva. E não é?

Há animais inofensivos, como a vicunha da bandeira do Peru ou o canguru e o avestruz que ornamentam o brasão da Austrália, mas predominam nos símbolos oficiais os animais guerreiros, sobretudo o leão e a águia, adotados por diferentes países. Até a pacífica Islândia, sucesso de simpatia no torneio da Rússia, acolhe um animal agressivo em seu brasão: um touro. Bandeiras e brasões, assim como os hinos nacionais, sugerem mais guerra do que paz. “Às armas, cidadãos!”, pede o hino francês. No galo, a faceta lírica de anunciar o dia coexiste com a arrogância de estufar o peito, alardear-se o chefe do pedaço e gostar de briga. Solta num campo de futebol, a animália das bandeiras e brasões não teria papel senão o de assustar, intimidar e ferir. No jogo em que a Suíça venceu a Sérvia, uma águia entrou em campo: dois jogadores suíços com origem no Kosovo comemoraram os gols imitando com as mãos as asas da águia, símbolo de resistência da região rebelde contra a opressão sérvia.

Não foi à toa que os estúdios Disney deram ao Zé Carioca o papel de nos representar

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E o Brasil, que não tem animal na bandeira nem no brasão da República, como fica nessa história? O verso das notas de real contém exemplares da fauna nativa que vão do beija-flor ao mico-leão-dourado. Prima pela ausência um bicho que, este sim, pelos registros históricos, pela personalidade e até pelas cores das penas, iguais às da bandeira, melhor representa a nacionalidade: o papagaio. Alguns dos primeiros mapas a incluir nosso país deram-lhe o nome de Terra Papagalli. O papagaio era a marca registrada da nova terra. Se um animal merecesse figurar na camisa da seleção, seria ele. O papagaio não é forte como o leão, não assusta como a águia nem é altivo como o galo, mas seu pacifismo pode até representar uma vantagem competitiva, em tempos de valorização da harmonia entre as nações. Por outro lado, a cultura popular o representa como um tipo matreiro e fescenino, tal qual nas anedotas de que é protagonista, o que o desfalcaria da dignidade exigida dos símbolos oficiais, mas que fazer? Não foi à toa que os estúdios Disney escolheram o Zé Carioca para nos representar.

Exemplos da atualidade aproximam a nacionalidade da alma malandra que a caricatura atribui aos papagaios. Quando nosso melhor jogador mergulha no chão para enganar o juiz, exibe ao mundo um lado do caráter nacional. Quando um político vende a alma pelo apoio dos ases da corrupção, exibe a exacerbação do mesmo traço indigno. Diga-se a favor do bichinho, porém, que, segundo atestam os especialistas, é inteligente e fiel nos afetos. Possui qualidades como a atenção e a capacidade de aprender. E apega-se ao dono a ponto de entrar em depressão quando afastado dele. O papagaio da caricatura é tão malandro quanto o papagaio real é sério. Digamos que o primeiro encarna o país tal qual se apresenta na realidade, aos olhos do mundo e de si mesmo, e o segundo, o país aspirado. A combinação entre os dois reforça-lhe a condição de espelho da nacionalidade.

Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593

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