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Opinião não é argumento

O pior ocorre quando crenças se materializam em opinião e são usadas para substituir argumentos

Por Walter Carnielli*
Atualizado em 13 abr 2018, 06h00 - Publicado em 13 abr 2018, 06h00

Aqui está uma história que pode ser verdadeira no contexto atual do Brasil. Um jovem professor de filosofia, instruindo seus alunos à filosofia da religião, introduz, à maneira que a filosofia opera há séculos, argumentos favoráveis e contrários à existência de Deus. Um dos alunos se queixa, para o diretor e também nas onipresentes redes sociais, de que suas crenças religiosas estão sendo atacadas. “Eu tenho direito às minhas crenças.” O diretor concorda com o aluno e força o professor a desistir de ensinar filosofia da religião.

Mas o que é exatamente um “direito às minhas crenças”? O professor poderia, por exemplo, estar dando um curso sobre “O golpe de 2016”, e o ministro da Educação poderia estar fazendo o papel do diretor, vetando o curso para proteger os “ofendidos” por ele. O direito à crença, nesse caso, poderia ser visto como o “direito evidencial”. Alguém tem um direito evidencial à sua crença se estiver disposto a fornecer evidências apropriadas em apoio a ela. Mas o que o estudante conservador, o diretor e o ministro da Educação estão reivindicando e promovendo não parece ser esse direito, pois isso implicaria precisamente a necessidade de pôr as evidências à prova.

Parece que o estudante está reivindicando outra coisa, um certo “direito moral” à sua crença, como avaliado pelo filósofo americano Joel Feinberg, que trabalhou temas da ética, teoria da ação e filosofia política. O estudante está afirmando que ele tem o direito moral de acreditar no que quiser, mesmo em crenças falsas.

Muitas pessoas acham que, se têm um direito moral a uma crença, todo mundo tem o dever de não privá-las dessa crença, o que envolve não criticá-la, não mostrar que é ilógica ou que lhe falta apoio evidencial. O problema é que (sobretudo na atual conjuntura brasileira, às portas das eleições) essa é uma maneira cada vez mais comum de pensar sobre o direito de acreditar. E as grandes perdedoras são a liberdade de expressão e a democracia.

Qualquer que seja sua crença, desde pensar que armar a população vai resolver o problema da violência urbana, ou que a terra é plana, você não pode exigir que outro sacrifique a própria crença para salvaguardar o direito à sua. A defesa de sua crença está restrita ao uso de métodos que pertencem ao espaço das razões — argumentação e persuasão, em vez de força. Você tem o direito de avançar sua crença na arena pública usando os mesmos métodos de que seus oponentes dispõem para dissuadi-lo.

O pior acontece quando crenças se materializam em opinião, e são usadas como substitutas de argumentos, quando o “Eu tenho direito às minhas crenças” se transforma em “Eu tenho direito à minha opinião”. Crenças e opiniões não são argumentos. Mais precisamente, crenças diferem de opiniões, que diferem de fatos, que diferem de argumentos. Um fato é algo que pode ser provado verdadeiro. Por exemplo, é um fato que Júpiter é o maior planeta do sistema solar tanto em diâmetro quanto em massa. Esse fato pode ser provado pela observação ou pela consulta a uma fonte fidedigna.

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Uma crença é uma ideia ou convicção que alguém aceita como verdadeira, como “passar debaixo de uma escada dá azar”. Isso certamente não pode ser provado (ou pelo menos nunca foi). Mas a pessoa ainda pode manter sua crença, como vimos, se não pelo “direito evidencial”, apelando para o “direito moral”. Ou ainda, pelo mesmo “direito moral”, deixar de acreditar no que ela própria pensa serem evidências, como no caso do famoso dito (atribuído a Sancho Pança) “Não creio em bruxas, ainda que existam”.

Já uma opinião é uma declaração ou manifestação de uma ideia que reflete a crença. A crença é de foro íntimo; a opinião manifesta a crença. Por fim, o mais importante: um argumento não é uma luta ou um debate, nem um desacordo entre as pessoas. Um argumento é uma busca pela verdade. A dificuldade surge por sempre haver uma tensão entre verdade e persuasão. Assim, se o argumento é o processo de persuadir uma audiência através da verdade, a retórica, no sentido contemporâneo, é o processo de convencê-la. Ponto. A verdade aí é um elemento secundário: a propaganda, o discurso político e sobretudo as fake news estão nesse compartimento.

Muitos acham que, pelo fato de terem o direito moral a uma crença, o mundo não pode criticá-la

Mas, se crenças, ainda que verdadeiras e embasadas em evidências, não se confundem com opiniões, com fatos ou com argumentos, o que dizer de crenças falsas? Como elas são engendradas? Entra em cena o já quase famoso “viés de confirmação”, a tendência das pessoas de acolher informações que apoiem suas crenças e rejeitar informações que as contradigam. Das muitas formas de pensamento defeituoso já identificadas, o viés de confirmação está entre os mais bem catalogados. Mesmo após a evidência de que suas crenças foram totalmente refutadas, os indivíduos em geral não conseguem fazer revisões apropriadas em certas crenças.

Um aliado perverso do viés de confirmação é a “ilusão de profundidade explicativa”: as pessoas acreditam que sabem muito mais do que realmente sabem, e o que lhes permite persistir nessa crença é a ressonância em outras pessoas — dificilmente sabemos dizer onde o nosso entendimento termina e o do outro começa. Essa confusão de fronteiras, usada de forma positiva, parece ser crucial para o que consideramos progresso. Mas, como regra geral, sentimentos fortes sobre questões candentes não surgem de uma compreensão profunda, e mais se parecem com os de uma torcida organizada.

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Duas metáforas recentes tentam explicar mais metodologicamente esses fenômenos: a ideia da “bolha epistêmica” e a da “câmara de eco”. Um estudo publicado na revista Proceedings, da Academia Nacional de Ciências (“The spreading of misinformation online”, https://doi.org/10.1073/pnas.1517441113), examinou dados sobre temas discutidos em redes sociais entre 2010 e 2014. O estudo constatou que os usuários tendem a se agregar em comunidades de interesse, o que causa reforço e promove vieses de confirmação, segregação e polarização. Uma “bolha epistêmica” se forma em grupos (redes sociais, igrejas ou tendências políticas), nos quais vozes discordantes são excluídas por omissão, de maneira inadvertida ou proposital, pelo mecanismo de viés cognitivo. Isso acontece quando redes construídas por motivos eminentemente sociais começam a ser usadas como fontes de informação. No segundo caso, uma “câmara de eco” é uma estrutura social na qual vozes discordantes são ativamente desacreditadas. Numa bolha epistêmica, vozes destoantes não são ouvidas; numa câmara de eco, essas vozes são sabotadas. A prisão de Lula pode ser vista como um episódio de perseguição judicial ou como um exemplo de avanço no combate à corrupção no país. Mas quem já tentou discutir com qualquer dos lados, penetrando numa bolha epistêmica através das redes sociais, sentiu o que é uma câmara de eco — cujo nome nada tem a ver com o conhecido escritor italiano.

Não é necessariamente verdade, como disse Umberto Eco, que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Basta que milhões de pessoas instantaneamente conectadas caiam vítimas do viés de confirmação e da ilusão de profundidade explicativa, e teremos o cenário pronto para a agressividade e polarização nas redes, cujo efeito, ou parte da causa, se vê no Judiciário, na imprensa e em outras instituições.

O que o diretor e o ministro da Educação deveriam ter reconhecido ao estudante e aos ofendidos com o curso “O golpe de 2016” é que, sim, eles têm um direito moral à sua crença, e têm o direito moral de não ter essa crença arrancada à força. Mais nada. A filosofia da religião permanece no programa, e o programa do curso permanece vigente.

* Walter Carnielli é matemático e professor titular de lógica e filosofia da ciência do Centro de Lógica e do Departamento de Filosofia da Unicamp, em Campinas

Publicado em VEJA de 18 de abril de 2018, edição nº 2578

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