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O videogame no pódio?

Essa é a pergunta que o Comitê Olímpico Internacional está se fazendo diante da ideia de incluir os e-sports como modalidade dos Jogos, já em 2024

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 8 set 2017, 06h00 - Publicado em 8 set 2017, 06h00

O jamaicano Usain Bolt, de 31 anos, dono de oito medalhas de ouro em Olimpíadas — o único nome do atletismo a se tornar tricampeão em duas modalidades (100 e 200 metros rasos) —, é capaz de correr a 44,7 quilômetros por hora. Com 1,95 metro e 94 quilos, ele tem 90% de suas fibras musculares constituídas pelo tipo “contração rápida”, o que foi decisivo para transformá-lo num atleta perfeito para corridas. Bolt, que deu show sempre que saiu em disparada nos Jogos, acaba de se aposentar, é verdade, contudo jamais deixará de fazer parte da célebre galeria dos chamados deuses olímpicos. Pois não é que agora querem compará-lo a jogadores de… videogame?! Será que os atletas de e-sports — os jogos eletrônicos —, aqueles competidores de campeonatos de games como Call of Duty (de tiro) ou League of Legends e Dota 2 (ambos de estratégia), estão à altura de disputar uma medalha olímpica?

A questão pode soar exótica, mas tem sido levantada pelo próprio Comitê Olímpico Internacional (COI). Cogita-se incluir os videogames como uma modalidade oficial dos Jogos já a partir de 2024, em Paris. A discussão foi iniciada pelo canoísta francês Tony Estanguet, ele mesmo dono de três ouros, em Sydney (2000), Atenas (2004) e Londres (2012). Atualmente, Estanguet é copresidente do comitê que prepara a Olimpíada de Paris. No começo de agosto, ele afirmou que levaria ao COI a possibilidade de integrar os e-sports aos Jogos. O alemão Thomas Bach, presidente do COI, parece não ter gostado da sugestão. “Queremos promover paz, a não discriminação e a não violência entre as pessoas. Isso não condiz com videogames, que são sobre violência, explosões e matar. É aí que temos de desenhar um limite”, alfinetou Bach. A reação do todo-poderoso dos Jogos não significa, porém, um game over para os e-sports. O que se espera é adequar o gênero ao espírito olímpico.

Outros esportes – À esquerda, o sueco David Wallin, ganhador do ouro em 1932, na categoria pinturas — as artes saíram dos Jogos em 1949. Ao fundo, com as peças pretas, o campeão mundial de xadrez Magnus Carlsen, da Noruega, nas finais de 2016: esporte já cogitado para a Olimpíada (Eduardo Munoz Alvarez/AFP)

Na conceituação implacável dos dicionários, esporte é “a prática regular de uma atividade que requer exercício corporal e que obedece a determinadas regras”. Nesse quesito, as modalidades eletrônicas podem até passar, mas patinando. Afinal, elas não requerem muito esforço físico de seus atletas. Em uma hora de prática são gastas apenas 62 calorias (menos que em uma hora de sono inquieto, com pesadelos!). Mas, para virarem categoria olímpica, há ainda outras exigências — e, aí, os jogos eletrônicos acertam em cheio. A Comissão do Programa Olímpico, que determina quais novidades merecem ingressar na competição, explica que uma nova modalidade precisa ser capaz de “potencializar a popularidade da Olimpíada e garantir que ela continue relevante para os jovens, com inovação e adaptação aos gostos e tendências modernos”. Alguma dúvida de que essa expectativa seria atendida pelos videogames?

Em 2017, os e-sports devem movimentar 696 milhões de dólares. Seu público está na casa dos 191 milhões de fãs — somando-se quem vai aos estádios e quem acompanha as transmissões via TV ou internet. Há dois anos, eram 120 milhões. Em 2020, serão cerca de 300 milhões. Esse público é majoritariamente jovem — e poderia elevar o interesse comercial pelos Jogos. A título de comparação, a Olimpíada do Rio, em 2016, registrou queda de 30% na audiência das transmissões de TV em todo o mundo — apesar de o volume de telespectadores ainda ser imenso (3,5 bilhões de pessoas diante da televisão durante toda a competição). Há três anos, a final do Mundial de League of Legends, o game mais popular no gênero, reuniu 45 000 pessoas num ginásio, além dos outros 27 milhões que a viram pela TV e pela web. Os campeões de Dota 2, cuja premiação é a maior da modalidade, ganham gratificações superiores a 20 milhões de dólares. “É interessante entender o porquê de tanto sucesso”, disse o francês Estanguet.

Apesar de todo o estranhamento que a proposta vem causando, os videogames não se configurariam como o esporte mais inusitado a ingressar na Olimpíada. Os primeiros registros olímpicos datam de 776 a.C., quando os Jogos eram realizados na Grécia em louvor aos deuses do Olimpo. O objetivo do evento era destacar as qualidades físicas dos competidores, além de estimular o bom relacionamento entre as cidades gregas, então independentes entre si. Com tais características, os Jogos aconteceram até o ano de 394 d.C., quando o imperador romano Teodósio decretou o fim de tudo o que considerava como “festas pagãs”.

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(Arte/VEJA)

O renascimento da tradição olímpica grega só se deu em 1896, por iniciativa do barão francês Pierre de Coubertin, que via na disputa uma forma de incentivo à educação e à propagação da paz. Para ele, os Jogos deveriam “abraçar todo o universo do conhecimento”. Por isso, entre 1912 e 1948, categorias como literatura, artes plásticas, escultura, composição musical e arquitetura integraram as competições. As artes só deixaram de fazer parte da Olimpíada porque, em 1949, o COI identificou profissionais na disputa — e a regra era que apenas amadores poderiam participar.

Os vaivéns são comuns nos Jogos. Desde seu renascimento, somente cinco modalidades estiveram presentes em todas as edições: atletismo, ciclismo, esgrima, ginástica e natação. Um esporte que entrou e saiu foi o judô — teve seu ingresso em 1964, saiu em 1968 e voltou em 1972. Nos Jogos de 2020, em Tóquio, haverá disputas de escalada, skate e surfe, modalidades de interesse para os jovens.

Contra a adoção dos games, pesa o fato de eles não exigirem muito (quase nada) do físico de seus atletas. Mas a balança pende a favor deles caso se considerem como esporte os chamados “jogos da mente”, como o pôquer e o xadrez — este, aliás, também já foi cogitado para a Olimpíada. A recusa fez com que fossem criados, em 2008, os mundiais de esportes da mente. Segundo a organização responsável por tais certames, a Associação Internacional de Esportes da Mente, esse teria sido “o primeiro passo para introduzir um terceiro tipo de Jogos Olímpicos” (além da Olimpíada tradicional, a entidade se refere aos Jogos de Inverno). Os videogames estariam mais bem encaixados nessa opção?

A pergunta ainda está em aberto. Mas uma resposta — ou ao menos o esboço de uma — pode surgir para o público antes mesmo da decisão do COI. Os e-sports já serão modalidade oficial, com direito a medalhas, nos Jogos Asiáticos, que terão lugar na China em 2022. Trata-se do segundo maior evento esportivo do planeta, atrás somente da Olimpíada. Os games que estarão na disputa são o Fifa 2017 (de futebol) e títulos do gênero multijogadores, como o League of Legends e o Dota 2. Além de servir de teste para uma provável progressão rumo à Olimpíada, a presença dos videogames nos Jogos Asiáticos permitirá analisar se eles, sempre associados às empresas que os desenvolvem, teriam o chamado “espírito olímpico”. Ou se, como afirmou Thomas Bach, seriam apenas a expressão da violência.

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Para o Brasil, o ingresso dos e-sports na Olimpíada poderia resultar em medalhas. Os atletas nacionais estão entre os melhores do planeta — é o caso de Gabriel Santos Bohm, o Kami, de 21 anos, craque da equipe paiN Gaming, que já chegou às finais do Mundial de League of Legends; e de Gabriel Sguario, o FalleN, de 26 anos, que já foi o melhor praticante de Counter Strike, game de tiro similar ao Call of Duty.

Entre atletas tradicionais, no entanto, há resistência à aceitação dos videogames como esporte olímpico. Para eles, Kami e Fallen jamais poderiam ser comparados a um Usain Bolt. Antônio Carlos Moreno, o preparador dos atletas brasileiros de vôlei nos Jogos, resume a questão assim: “Nossos representantes extrapolam os limites físicos para diminuir, por vezes, um ou dois segundos de suas marcas finais. Os treinamentos são doloridos e desgastantes. Mesmo que o competidor olímpico seja avaliado também por suas condições mentais e emocionais, o que realmente o diferencia é sua velocidade, sua agilidade, sua força, sua destreza. É incorreto compará-­lo a um rapaz que joga videogames”.

Certo ou errado, há mais elementos nessa pendenga do que apenas a avaliação física dos atletas. Caso os e-sports se tornem olímpicos, pesarão para sua permanência nos Jogos os milhões de dólares que movimentam — capazes de enfeitiçar os organizadores —, além dos milhões de fãs que reúnem, em geral jovens sem interesse pela Olimpíada tradicional, que se somarão à audiência da nobre competição.

Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2017, edição nº 2547

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