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O sertão vai virar luz

A seca no Nordeste derruba o nível dos reservatórios para o mesmo patamar de 2001. A diferença é que, agora, o país dispõe de fontes alternativas de energia

Por Bianca Alvarenga Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 6 out 2017, 06h00 - Publicado em 6 out 2017, 06h00

Em meados da década de 70, quando a barragem de Sobradinho começou a ser construída, no se­miá­rido da Bahia, os compositores Sá e Guarabyra registraram o impacto causado pela obra com os versos: “O sertão vai virar mar, dá no coração / o medo que algum dia o mar também vire sertão”. Era o temor dos possíveis impactos ambientais da construção. Porém, além de prover água para o consumo humano e para a irrigação de plantações, o lago serve de reservatório para três usinas hidrelétricas ao longo da bacia do Rio São Francisco. A grave seca que castiga o Nordeste, a mais severa jamais registrada, deu nova atualidade à canção da dupla: o mar de Sobradinho está prestes a virar sertão. Com apenas 4,8% da capacidade total de água armazenada, é possível que o lago entre no volume morto no próximo mês. Se isso acontecer, as únicas duas turbinas da hidrelétrica que ainda estão ligadas devem ser desativadas. Detalhe: a usina representa quase 60% da capacidade de geração de energia no Nordeste. A probabilidade de desabastecimento de água nas cidades que margeiam o reservatório é iminente, mas não há, por enquanto, risco de falta de energia. Qual o milagre? As fontes alternativas, especialmente o vento. No mês passado, 53% da energia que abasteceu o Nordeste foi gerada em parques eólicos. A sombra do racionamento de energia de 2001 deixou um legado importante para o setor: o Brasil percebeu a urgência em diversificar sua matriz energética — e está fazendo o dever de casa.

Quando o assunto é falta de chuva, não é somente a Região Nordeste que está em uma situação delicada. Dados da consultoria Thymos mostram que o nível médio dos reservatórios das hidrelétricas de todo o país está no mais baixo patamar desde 2001 (veja abaixo). O fenômeno resulta dos efeitos do El Niño, que reduziu o volume pluviométrico no interior nordestino e em parte do cerrado brasileiro.

Tanto que o governo anunciou recentemente que as contas de energia de outubro virão com a bandeira vermelha no nível 2, a classificação mais cara na escala tarifária. O sistema de bandeiras foi criado em 2015 para sinalizar ao consumidor o custo de produção da energia. Na prática, a bandeira vermelha é aplicada quando as formas mais caras de geração são acionadas. Desde que o atual sistema está em vigência, a bandeira vermelha no nível 2 ainda não tinha sido acionada. Ela implica um custo extra de 3,50 reais a cada 100 quilowatts-hora, o que representa um acréscimo de 6 reais em uma conta de consumo médio. A tarifa adicional, uma maneira de incentivar a redução no consumo, deve ser mantida até o fim do ano. Apesar de o período de chuvas começar oficialmente em outubro, meteorologistas estimam que a pluviosidade ficará abaixo da média histórica neste ano. Se assim for, é possível que o nível dos reservatórios baixe para patamares inferiores ao de 2001.

Imagem de arquivo do Alto Sert¿o I, maior complexo eÛlico da AmÈrica Latina, instalado no sudoeste da Bahia, nos municÌpios de CaetitÈ, Guanambi e Igapor¿, composto por 14 parques eÛlicos que comportam 184 aerogeradores. Foto produzida em: 01/07/2014 Luciana Serra/Futura Press
Alta voltagem – A produção eólica, como a feita no sertão baiano (foto), já representa metade da energia nordestina (//Futura Press)

Apesar das projeções preocupantes, o risco de um novo racionamento é baixo. “A recessão econômica e o aumento no preço das contas de luz fizeram com que o consumo ficasse estagnado nos últimos três anos. Se a demanda tivesse crescido como esperávamos, a situação atual seria muito pior”, ressalta João Carlos Mello, presidente da Thymos. Se o Brasil não tivesse ultrapassado a pior crise econômica da história, seriam necessárias mais duas usinas de Belo Monte para atender ao consumo.

A pior seca - Área do reservatório de Sobradinho: perto do volume morto
A pior seca – Área do reservatório de Sobradinho: perto do volume morto (Raul Spinassé/Folhapress)

Mas, além da recessão, um fator indesejado, o grande diferencial do quadro atual para crises energéticas passadas é a disponibilidade de energias alternativas. Em 2001, 90% de toda a eletricidade vinha de fontes hídricas. Os outros 10% eram gerados por usinas térmicas e nucleares. (Hoje, as fontes hídricas respondem por 73%, as térmicas e nucleares, por 21%, e as alternativas já chegam a 6%.) O Brasil acreditava ter uma capacidade de geração superior ao consumo nacional, mas o ciclo de seca severa no começo dos anos 2000 derrubou a produção de energia e forçou o corte no consumo. O ônus político e econômico do racionamento fez com que o planejamento energético fosse pauta dos ex-­presidentes Lula e Dilma Rousseff. A necessidade de uma alternativa rápida e segura às hidrelétricas levou a investimentos em térmicas, uma opção cara e poluente. Apesar de seu custo, essas usinas salvaram o país de um racionamento em 2014, quando outro ciclo de seca severa baixou o nível dos reservatórios. Técnicos do Ministério de Minas e Energia alertavam para um possível racionamento, hipótese descartada pela ex-presidente Dilma, que tentava a reeleição. O acionamento de todas as térmicas encareceu as contas de luz, mas evitou o desabastecimento no país.

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As fontes renováveis tornaram-­se relevantes apenas recentemente, mas estão ganhando espaço. No mês passado, as usinas eólicas produziram 5 870 megawatts médios, suficientes para abastecer 25 milhões de pessoas. Já a energia solar ganhou os seus primeiros parques nos últimos dois anos. É um sistema ainda caro, que, para ser viável em larga escala, depende de uma queda no preço das placas fotovoltaicas, responsáveis pela captação da luminosidade a ser transformada em eletricidade. Em setembro, foi inaugurado no sertão da Bahia o maior polo de geração de energia fotovoltaica da América Latina, implantado pela italiana Enel. A diversificação contribuirá, no futuro, para preservar o nível dos reservatórios de água, que não estão se recuperando plenamente nem mesmo nos anos mais chuvosos. Mas, se a economia voltar a crescer com força, como se espera, o país poderá enfrentar um novo gargalo energético. Não existe outro grande projeto de geração previsto, observa Cristopher Vlavianos, presidente da comercializadora de energia Comerc. “Seria importante investir em fontes seguras e baratas, como a geração térmica a gás.” Se não quiser passar um atestado de incompetência, o governo precisa acelerar a concessão de projetos para livrar os brasileiros definitivamente do risco de apagões. Não faz sentido que um país tão rico em recursos como água, vento, sol e gás natural enfrente essa ameaça.

Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551

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