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O privilégio é a lei

Levantamento de VEJA mostra que 86% dos juízes recebem auxílio-moradia, que só na esfera do Judiciário custa ao país 920 milhões de reais por ano

Por Sofia Fernandes, João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 fev 2018, 06h00 - Publicado em 9 fev 2018, 06h00
(Arte/VEJA)

Um levantamento feito por VEJA junto a 92 tribunais e conselhos de Justiça mostra que 86% dos juízes brasileiros receberam o auxílio-moradia em 2017. Com isso, a União e os estados gastaram no período cerca de 920 milhões de reais com o pagamento do benefício mensal de 4 377,35 reais aos magistrados. Os 920 milhões de reais podem não parecer muito dinheiro nos bilhões do Orçamento público, mas equivalem a um terço do empréstimo que o Estado do Rio de Janeiro contraiu para quitar os salários atrasados de seus 400 000 servidores no fim do ano passado.

A pesquisa feita por VEJA — com base em dados enviados pelos próprios tribunais ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — revelou ainda como varia o comportamento dos juízes por estado. Em Alagoas, Rio de Janeiro e Tocantins, a turma mandou ver: 99% dos magistrados na ativa receberam o benefício em 2017. O Paraná, ao contrário, foi o estado com menor porcentual de beneficiados: 67%. No caso do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde está lotado o juiz Sergio Moro, o auxílio foi usado por 97% dos juízes — inclusive o próprio Moro. Para receberem o benefício, os profissionais nem sequer precisam requisitá-lo. É automático. A lei não exige nenhum esforço da parte do juiz que preferir usar o dinheiro. Já os que desejam abrir mão dele devem preencher um formulário de solicitação.

O auxílio-moradia nasceu de uma burla. Em 2000, o governo de Fernando Henrique Cardoso discutia com o Congresso se um aumento do salário mínimo caberia no Orçamento. Mas, antes mesmo de a discussão chegar ao fim, o Judiciário adiantou-se para resolver o seu problema. Uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que, a partir daquele instante, todos os juízes que não estivessem trabalhando em sua cidade de origem deveriam receber até  3 000 reais mensais a título de custeio de moradia. A liminar do STF visava a acalmar os ânimos da magistratura — um grupo de juízes insatisfeitos com seus rendimentos (12 000 reais à época) chegou a ameaçar greve (prática que, no caso da categoria, é proibida).

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Dezoito anos transcorreram desde a pedalada do Judiciário, e o penduricalho ainda sobrevive — só que, nesse período, sofreu um notável processo de ampla socialização, como se verá a seguir. De sua criação até hoje, o auxílio-moradia chegou a sofrer alguns ataques. Em 2005, a generosa liminar concedida pelo STF foi derrubada. Diante disso, os tribunais passaram a deliberar individualmente sobre o auxílio, valendo-se do artigo 65 da Lei Orgânica da Magistratura, que prevê que todo juiz deve estar presente na comarca que lhe foi designada com “ajuda de custo” para moradia. Receosas de que o benefício ficasse ao sabor do vento, associações de classe pediam sua regulamentação definitiva dia sim e outro também. A solução veio de surpresa, em setembro de 2014. Enquanto as atenções do Brasil estavam concentradas no resultado do primeiro turno da eleição presidencial, o ministro Luiz Fux, do STF, concedeu três liminares determinando o pagamento do auxílio a todos os magistrados do país, inclusive os que tinham domicílio próprio na cidade em que estavam lotados ou que nunca tinham sido deslocados de comarca.

Um mês antes da decisão do ministro, a então presidente Dilma Rousseff havia decretado o fim de um complemento salarial travestido de bonificação, a chamada “gratificação por acúmulo de funções”. A decisão revoltou juízes. Simone Bretas, juíza em Petrópolis, no Rio de Janeiro, decidiu suspender o andamento de processos de sua vara. “A União se enriquece ilicitamente com o labor desta magistrada há anos, enquanto acumula acervos de forma graciosa, sem nenhuma remuneração ou indenização, situação que não pode prosperar”, escreveu a juíza em uma das decisões em que paralisava o andamento de uma ação alegando falta de condições de trabalho. O mundo dá voltas: Simone Bretas é mulher do também juiz Marcelo Bretas, conhecido como “Sergio Moro do Rio de Janeiro”, que virou alvo recente de acertadas críticas por ter obtido na Justiça o direito de ganhar auxílio-moradia mesmo sendo casado com uma magistrada que já o recebe.

Se o Judiciário é o poder que mais onera o contribuinte com o benefício, não é o único. No Executivo, a lei prevê que servidores de médio e alto escalão só podem fazer uso do auxílio (que supera 7 000 reais no caso de ministros de Estado) quando não houver imóvel funcional à disposição. Hoje, há sete imóveis funcionais vagos para ser ocupados por representantes do Executivo. Alguns deles, porém, preferem sua parte em dinheiro — como é o caso de pelo menos quatro ministros do governo de Michel Temer: Eliseu Padilha (Casa Civil), Helder Barbalho (Integração Nacional), Sérgio Sá Leitão (Cultura) e Ilan Goldfajn, que preside o Banco Central e tem status de ministro. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que administra os imóveis funcionais, afirma que nem sempre os imóveis atendem à demanda da família dos servidores.

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O Poder Legislativo foi o que menos gastou com o benefício no ano passado: 10 milhões de reais. A maioria dos deputados (350 dos 513) vive nas quadras de imóveis funcionais. Há treze deputados que têm casa própria em Brasília, mas que, mesmo assim, não abrem mão do dinheirinho extra — é o caso, por exemplo, do deputado Jair Bolsonaro, pré-candidato à Presidência da República pelo PSC.

Carlos Velloso, que presidia o STF quando a liminar do auxílio foi concedida pela Corte, em 2000, hoje reconhece que a questão saiu de controle. “A finalidade do auxílio era proporcionar moradia ao juiz transferido que não tinha lugar para morar”, diz, apontando um uso compreensível e aceitável para o benefício. “Agora, passou a ser uma parcela salarial. Está errado”, completa o ex-ministro. Para ele, a solução para o problema seria reajustar o salário dos juízes ou retomar a bonificação por tempo de serviço como forma de anabolizar os ganhos da classe. O governo federal, no entanto, já descartou a possibilidade do reajuste. Um aumento salarial para a categoria, hoje titular de um rendimento de mais de 33 000 reais, explodiria a Previdência, já que teria de ser estendido a aposentados e pensionistas — aquela massa que ganha salário mínimo ou pouco mais.

Outro ex-ministro da Corte e hoje advogado, Francisco Rezek discorda de Velloso e avalia que os ganhos atuais de um juiz são suficientes para financiar sua moradia. “Os salários de hoje justificam e compensam corretamente o trabalho de um magistrado. Não vejo necessidade de benefícios agregados”, afirma. Para ele, auxílios devem ser dados em casos excepcionais, como o de deslocamento de domicílio. A divergência, contudo, pode em breve ser superada pela clareza da lei: o ministro Fux, autor da liminar que liberou geral e responsável pelo congelamento do andamento do processo na Corte, decidiu agora levá-lo para discussão em plenário. A presidente Cármen Lúcia sinalizou a intenção de pôr o assunto em pauta em março. Com isso, o STF terá a chance histórica de corrigir o que nasceu torto, seguiu imoral e hoje é inaceitável.

Colaborou Marcelo Soares

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Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2018, edição nº 2569

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