Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

O mundo assiste à Lava-Jato

Com 'O Mecanismo', que será visto em 190 países, José Padilha transforma o escândalo brasileiro em entretenimento global — sem corromper sua essência

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 mar 2018, 06h00 - Publicado em 16 mar 2018, 06h00

Noite após noite, o delegado Marco Ruffo (Selton Mello) vasculha latas de lixo como um cão farejador obsessivo: ele sabe que ali tem osso de bicho grande. O agente da PF que protagoniza O Mecanismo, série do brasileiro José Padilha que chegará à Netflix na sexta-feira 23, gasta seus dias num escritório em Curitiba deglutindo centenas de milhares de aparas de extratos bancários jogadas no lixo pelo doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz). Ex-colega de escola de Ruffo, Ibrahim passou de pobretão vendedor de pastéis a muambeiro, e daí a milionário. “Vinte anos de Polícia Federal, e tudo o que consegui foi comprar um carro usado para minha esposa e um sítio no interior do Paraná”, repete Ruffo. A vida de Ibrahim oferece um contraste chocante: sem ter completado os estudos e nem ao menos exercer uma profissão, ele circula nas altas-rodas políticas e empresariais. O delegado da série é fictício, mas seu alvo se inspira num personagem real e familiar: o doleiro Alberto Youssef, cuja prisão faria deslanchar a maior operação contra a corrupção vista até hoje no Brasil. A Lava-Jato já foi tema de um longa-metragem, o constrangedor Polícia Federal — A Lei É para Todos. Mas agora torna-se um escândalo tipo exportação: com ritmo de thriller investigativo, O Mecanismo vai ser lançado ao mesmo tempo em 190 países. Será pelo prisma de Padilha, enfim, que o mundo vai conhecer os meandros da operação. E ninguém exibe tantas credenciais para cumprir a tarefa quanto o diretor dos dois Tropa de Elite.

A Lava-Jato revista por Padilha é um ser híbrido: baseia-se em episódios verídicos, mas abraça sem pudor a reinvenção dramatúrgica. Apesar das licenças, não trai a essência do esquema desnudado pela operação que mudou a história do país. Ruffo resume a dimensão insidiosa do inimigo: “É um câncer”. Em O Mecanismo, a luta contra essa chaga se inicia dez anos antes da eclosão da Lava-Jato. Ao remontar e cruzar milhares de extratos bancários, Ruffo descobre o bilionário esquema de lavagem de dinheiro do Caso Banestado. A investigação funcionou como ensaio para a futura operação, mas não teve final feliz para quem ansiava ver os corruptos na cadeia. O doleiro Ibrahim é preso, mas logo seus advogados manobram para tirá-lo do xadrez em troca de uma delação premiada meia-sola, que fez tudo terminar em pizza — como ocorreu com seu similar real Youssef em 2003.

O inconformista Ruffo não só vê seu trabalho perdido como amarga o desterro pela audácia de mexer com corruptos de largo costado: é expulso da PF e obrigado a manter a família com uma pensão de fome. Já Ibrahim continua a operar livre, leve e solto. Sua quadrilha, que faz lavagem de dinheiro para as maiores empreiteiras e políticos do país, age sob a fachada de uma casa de câmbio chinfrim instalada num posto de gasolina em Brasília. Mas, graças a milimétricos deslizes dos criminosos, a equipe da PF em Curitiba — agora liderada pela antiga escudeira de Ruffo, a delegada Verena (Caroline Abras) — vislumbra a chance de pegar não apenas o doleiro, como outros peixes maiores. Superestimando sua sorte, Ibrahim — de novo, igualzinho ao que Youssef fez na vida real — dá de presente, por impulso, um carrão para João Pedro Rangel (Leonardo Medeiros), executivo da gigantesca companhia petrolífera estatal Petrobrasil. Sim, claro: Rangel é o equivalente de Paulo Roberto Costa, primeiro delator da Lava-Jato — e a empresa em questão é aquela da qual ele foi diretor de verdade, a Petrobras. A série recria a tensão e os lances inacreditáveis da operação com múltiplos alvos em diferentes cidades que detonou a Lava-Jato — cujo quarto aniversário se completa neste sábado 17.

O Mecanismo exibe certo ponto fraco. No caso dos partidos, a série dá nome aos bois — PT, MDB e PSDB são citados. Mas troca-se o nome de personagens, mesmo aqueles amplamente conhecidos, o que às vezes lança a série no campo da caricatura pueril. Quando são recriadas histórias verídicas, é compreensível condensar personagens e mudar acontecimentos de lugar em nome da fluência narrativa. Enquanto as trocas de nome ficam num Youssef ou num Paulo Roberto Costa, sem problemas. Mas já é demais quando se estendem a um Marcelo Odebrecht ou, pior, a ex-presidentes como os petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff — na série, eles são, pela ordem, Ricardo Bretch, João Higino e Janete Ruscov. O expediente covarde foi exigência da Netflix, pelo temor de problemas jurídicos.

Continua após a publicidade

Isso causa estranheza, mas não chega a tirar a força de O Mecanismo. Se o longa Polícia Federal — A Lei É para Todos abraça o ridículo na ânsia de transformar a Lava-Jato em filme de ação, a série de Padilha extrai entretenimento de alta octanagem das sutilezas investigativas e, sobretudo, da densidade psicológica dos personagens. Selton Mello, como de praxe, não decepciona: seu Ruffo transborda indignação autodestrutiva, o que confere dimensão trágica a um homem que faz as vezes de pequena peça capaz de mover a engrenagem da história. Curiosamente, política não é coisa que atraia o ator. “Nunca me interessei, na verdade. Mas o Ruffo é fabuloso: um touro indomável que todos acham louco, mas enxerga as coisas antes dos outros”, diz. A grande presença na primeira fase da série, contudo, é Enrique Diaz: o ator imprime à versão televisiva de Youssef a frieza soturna e cínica de um grande vilão.

Padilha faz de O Mecanismo uma extensão natural das discussões sobre o Brasil que empreendeu ao longo de toda a carreira. “Terminei o segundo Tropa de Elite em Brasília, insinuando que havia uma conexão entre a violência nas ruas e a corrupção na política. A Lava-Jato confirmou isso”, diz o diretor . Violência e injustiça social, em suma, não são tão distantes dos crimes de colarinho-branco: ao contrário, essas mazelas derivariam do mal sistêmico maior.

Outra tese cara ao diretor: as vaidades pessoais e as tentativas simplificadoras de personificar heróis e vilões são combustíveis que permitem ao esquema resistir despercebido e se revigorar. A série sugere que a investigação do Banestado se perdeu com a “mania de grandeza” do pessoal do Ministério Público e do juiz Paulo Rigo (Otto Jr.), que se apressaram a fechar acordo com o doleiro — no caso real, quem aprovou a mesma delação foi um então jovem Sergio Moro. Se no livro de que bebe a série o jornalista Vladimir Netto elege Moro como herói (até na capa), aqui ele é figura secundária. “Se você fizer uma série que tem como herói um cara sentado na mesa lendo processos, vira um tédio”, diz a roteirista Elena Soarez, que visitou Moro na 13ª Vara Federal, em Curitiba. “Ele é mesmo de pouquíssimas palavras.”

Continua após a publicidade

Na verdade, mais que atender a uma imposição da dramaturgia, o fato é que Padilha prefere enfatizar o esforço idealista de formiguinhas como Ruffo. Por reflexo inverso, ele dá outro recado contundente: os poderosos e seus operadores passam, mas o mecanismo da corrupção continua intacto. Mesmo o expediente boboca da troca do nome de Lula e Dilma tem algo a ensinar: na lógica do mecanismo, os políticos são só fantoches para se usar e descartar.

(./VEJA)

Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.