O jogo vai começar
Os partidos preparam seus candidatos e montam suas estratégias para aquela que tende a ser a eleição mais disputada e imprevisível desde a redemocratização
Protagonista de todas as eleições desde a redemocratização, Lula está preso, enquadrado na Lei da Ficha Limpa e não disputará a próxima sucessão presidencial. Com o petista fora do páreo, políticos e analistas concordam que a campanha começará sob o signo da imprevisibilidade: sem favoritos, sem vagas cativas no segundo turno e sem definição sobre quais serão os candidatos e as coligações partidárias. São tantas as incertezas que o Datafolha, ao registrar sua mais recente pesquisa, informou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que testaria duas dezenas de nomes em suas entrevistas. Parece um exagero, mas não é, já que o instituto não incluiu na lista os pré-candidatos de partidos nanicos, como José Maria Eymael (PSDC), o “democrata-cristão”. Nesse cenário de dúvidas, uma certeza emerge com clareza: em meio a tantas candidaturas, vai se destacar do pelotão quem amealhar a maior parte do espólio eleitoral de Lula. Em janeiro, o petista liderava as pesquisas com cerca de 35%, porcentual que, nas duas últimas eleições, garantiria vaga no segundo turno. Mesmo no cárcere, Lula será decisivo em 2018.
Em tese, o nome escolhido como “plano B” do PT deve ser o principal herdeiro dos votos hoje prometidos ao ex-presidente. O problema é que ninguém sabe quem será o substituto ou quando ele será formalizado na função. Setores mais radicais do partido defendem até mesmo a ideia de que a legenda não participe das eleições caso Lula continue preso. Os favoritos para suceder-lhe são o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o ex-governador da Bahia Jaques Wagner, que engatinham nas pesquisas de intenção de voto, são investigados na Operação Lava-Jato e enfrentam resistências internas por não serem considerados petistas de carteirinha e terem bom trânsito com tucanos e empresários. Na semana passada, Wagner chegou a dizer que o PT pode apoiar um nome de outra sigla na disputa pela Presidência. Foi um aceno às legendas de esquerda que se desgarram da nau petista e anunciam pré-candidaturas ao Planalto. Um aceno estratégico. O PT quer ganhar tempo para dirimir uma dúvida: quando desistir da candidatura de Lula? Uma ala propõe que seja o mais rápido possível, para que a engrenagem partidária tenha tempo para deixar claro ao eleitorado que Haddad, Wagner ou quem quer que seja é o herdeiro do ex-presidente. O encurtamento do cronograma facilitaria o processo de transferência de votos.
Outra ala argumenta que as chances do partido serão maiores, nas eleições para a Presidência e o Congresso, quanto mais tempo Lula permanecer em campanha. A candidatura dele, mesmo preso, manteria a base eleitoral unida e arregimentada até as vésperas da votação, o que reduziria a margem para defecção de eleitores. Só aí, então, haveria a substituição. Petistas alegam ainda que desistir da candidatura agora funcionaria como um atestado de culpa do ex-presidente e atrapalharia os esforços destinados a livrá-lo do cárcere. “Por toda a sua história, Lula continua sendo nosso candidato à Presidência da República, e sua candidatura será registrada no dia 15 de agosto, conforme a legislação eleitoral”, disse o PT em nota divulgada na semana passada. Lula foi o concorrente do partido em 1989, na primeira eleição direta após a redemocratização, na qual houve 22 candidatos — entre eles, Ulysses Guimarães (PMDB), Leonel Brizola (PDT) e Mario Covas (PSDB), já falecidos. Naquela ocasião, a nota de corte para a passagem ao segundo turno foi baixa: 16%, alcançados justamente por Lula. No segundo turno, o petista acabaria derrotado por Fernando Collor, que pretende disputar a Presidência novamente neste ano.
Em 2018, caso confirmada a profusão de candidaturas, a nota de corte para o segundo turno tende a ser novamente baixa. Resta saber se, como em 1989, um nome que não faz parte dos principais grupos políticos sairá vencedor. Postulantes ao papel de outsider não faltam. É o caso de Joaquim Barbosa, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF). Relator do histórico processo do mensalão, Barbosa filiou-se ao PSB na sexta-feira 6, um dia antes de Lula entregar-se à polícia. Ao contrário do que queria, o ministro não recebeu a garantia de que será candidato à Presidência, mas ouviu prognósticos extremamente favoráveis do marqueteiro Diego Brandy, que trabalhou na campanha do ex-governador Eduardo Campos, em 2014, pelo mesmo PSB. Com base numa pesquisa encomendada para consumo interno do partido, Brandy disse a Barbosa, em março, que ele tem chance real de vitória. Nos cenários sem Lula, Barbosa apareceria empatado na liderança com o deputado Jair Bolsonaro (PSL), a quem venceria em eventual segundo turno.
“Joaquim Barbosa vem de uma família pobre, é negro e vencedor. Esse histórico o identifica com o eleitor do Nordeste e do Lula”, diz Beto Albuquerque, vice-presidente do PSB, que, até pouco tempo atrás, torpedeava a candidatura do ministro. Se depender do marqueteiro Diego Brandy, Barbosa será apresentado aos eleitores como “o novo”, um novo acima da divisão entre direita e esquerda. Aos setores conservadores da sociedade, será lembrado o papel decisivo de Barbosa para a condenação à cadeia, no processo do mensalão, da antiga cúpula do PT. Aos órfãos da candidatura Lula, Barbosa prometerá empenho na aprovação da taxação de grandes fortunas, uma bandeira histórica dos petistas, como forma de aumentar os recursos para as áreas da saúde e da educação. Ainda não está claro qual será a plataforma econômica do ministro, mas o PSB diz que ela será acompanhada de uma agenda forte na área social. Antes de fechar seu programa, Barbosa precisa vencer um obstáculo inicial: consolidar seu nome no páreo. Ainda há no PSB setores contrários ao lançamento de uma candidatura própria à Presidência, porque esta atrapalharia o fechamento de alianças dos candidatos do partido com governos estaduais.
a transferência desse patrimônio eleitoral realmente ocorra, ela ganhará musculatura e passará a atrair o interesse de outros partidos
Barbosa, o outsider, terá de convencer a velha-guarda do PSB a apoiá-lo. Diz o cientista político Leonardo Barreto: “Joaquim Barbosa acumula todos os predicados necessários para ingressar na política. Ele tem potencial, recurso e capacidade, mas nunca foi testado na política. Vem de uma seara em que está acostumado a falar em ‘juridiquês’ e ninguém entender nada. Numa eleição, o jogo é outro”. O sonho de consumo de Barbosa era ter a ex-ministra Marina Silva como vice em sua chapa, mas Marina diz que não recuará da decisão de disputar a Presidência por seu partido, a Rede Sustentabilidade. Se não mudar de plano, Marina concorrerá ao cargo pela terceira vez. Em 2014, recebeu 22 milhões de votos. Em 2010, 19 milhões. É um senhor patrimônio eleitoral, que põe Marina bem posicionada na largada, mas não garante que ela chegará com força à reta final. O percurso de Marina está repleto de obstáculos. Um deles é o seu isolamento — a Rede tem apenas dois deputados federais e um senador. Outro é a precariedade da estrutura partidária. No ano passado, a Rede recebeu 4,4 milhões de reais do fundo partidário, 4,5% do valor destinado ao PT. Na propaganda eleitoral deste ano, Marina terá cerca de dez segundos, contra o um minuto e trinta segundos dos petistas.
A ex-ministra costuma dizer que todas essas restrições foram urdidas cuidadosamente pelo establishment a fim de inviabilizar o nascimento do novo na política brasileira. Mesmo assim, ela aposta que a mobilização popular, sobretudo por meio das redes sociais, compensará a falta de recursos e do tempo de TV da Rede. “Não serei candidata nem da direita nem da esquerda, mas do povo”, afirmou Marina numa reunião recente. Em linha com os tempos em que seus seguidores eram chamados de “sonháticos”, emendou: “Vou governar com os melhores quadros do PT e do PSDB”. Pesquisas recentes mostram que Marina seria uma das principais beneficiárias dos votos hoje prometidos a Lula. Ciro Gomes (PDT) também herdaria boa parte desse espólio. Candidato à Presidência em 1998 e 2002, Ciro foi ministro da Integração no governo Lula e, desde que lançou sua pré-candidatura, move-se como um equilibrista, acenando ao mesmo tempo a quem apoia e a quem rejeita o ex-presidente. Em entrevistas recentes, criticou a prisão de Lula, mas rechaçou a tese segundo a qual ele é um preso político.
Ciro não foi a São Bernardo do Campo, em São Paulo, para prestigiar o último discurso de Lula antes de este se entregar à polícia. Do alto do carro de som, o ex-presidente fez mesuras aos presidenciáveis Haddad, Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela d’Ávila (PCdoB), que estavam presentes, mas nada falou sobre Ciro. Petistas dizem que jamais apoiarão o pedetista em razão de sua postura em episódio tão emblemático. O PDT reage afirmando que o PT não perdeu seu viés hegemônico e nunca pensou em apoiar alguém de outro partido, nem mesmo com Lula preso. Apesar das rusgas momentâneas, a tendência é que os dois partidos marchem juntos em eventual segundo turno. Ciro está certo de que, em 2018, será apoiado pelos petistas, e não o contrário. Seus colegas ecoam a mesma confiança, mas temem que o candidato do PDT, como ocorreu em ocasiões anteriores, tropece em seu temperamento mercurial. Na semana passada, Ciro teve um pequeno entrevero com um youtuber que fez de tudo para provocá-lo.
Na primeira eleição direta após o fim da ditadura, também eram muitos os candidatos da esquerda. Em 2018, a diferença está no outro lado do espectro político. Segundo Mauricio Santoro, cientista político da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela primeira vez desde a redemocratização há um candidato de extrema direita, o deputado Jair Bolsonaro, com chances reais de vitória. Em 1989, o nome que mais se aproximava da ideologia de Bolsonaro, Enéas Carneiro (Prona), conseguiu menos de 1% dos votos. Nas outras eleições da era democrática, os candidatos com maior viabilidade eleitoral se posicionaram no centro. O próprio Lula só venceu em 2002 porque redigiu a Carta ao Povo Brasileiro e fez campanha na versão paz e amor. Para o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, Bolsonaro já garantiu vaga no segundo turno, beneficiado pela dificuldade da esquerda e do centro de definir os seus concorrentes. Pela esquerda estão no páreo o PT, Ciro, Boulos e Manuela. Pelo centro, o ex-governador Geraldo Alckmin, o presidente Michel Temer, o ex-ministro Henrique Meirelles, o senador Alvaro Dias (Podemos) e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), entre outros.
“A agenda negativa da Operação Lava-Jato tirou o protagonismo do PT e do PSDB. O PT é prejudicado pela lulodependência. E o PSDB, pela crise reputacional de se ver associado a um governo impopular”, afirmou Cortez. A crise reputacional dos tucanos tem outra faceta devidamente registrada na Justiça. Candidato derrotado do PSDB à Presidência em 2014, o senador Aécio Neves deve virar réu nesta semana no STF, no caso em que é acusado de extorquir 2 milhões de reais do empresário Joesley Batista. Já Alckmin é investigado pela suspeita de receber 10 milhões de reais da Odebrecht em 2010 e 2014. Por decisão da ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o processo foi encaminhado para a Justiça Eleitoral, e não para a Justiça Federal. Ou seja: Alckmin responderá por caixa dois, e não por corrupção, apesar de o repasse da empreiteira, segundo suspeita dos investigadores da Lava-Jato, ter relação com contratos superfaturados fechados em sua gestão como governador. Alckmin é um caso inédito de alguém que ganhou refresco depois de perder o foro privilegiado.
Até agora, o tucano não conseguiu costurar alianças em torno de sua candidatura. Os outros concorrentes também não. A negociação das coligações está completamente indefinida. PT e PSDB não são mais legendas de atração como nas campanhas anteriores, e a polarização entre os dois partidos, que foi a tônica da política brasileira nas últimas décadas, não deve se repetir. Uma nova correlação de forças provavelmente emergirá das urnas. Diz Mauricio Santoro: “Um dos riscos no horizonte é que o presidente vencedor se encontre diante de um país tão dividido que não tenha tranquilidade para governar”.
Com reportagem de Eduardo Gonçalves, Edoardo Ghirotto e Roberta Vassallo
Publicado em VEJA de 18 de abril de 2018, edição nº 2578