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O inferno são as outras

As mesmas mulheres que invejam e tanto valorizam a liberdade masculina criticam aquelas que adotam comportamento mais livre

Por Mirian Goldenberg*
Atualizado em 2 mar 2018, 06h00 - Publicado em 2 mar 2018, 06h00

Nas minhas pesquisas, tenho constatado que muitas mulheres brasileiras reproduzem e fortalecem, consciente ou inconscientemente, a lógica da dominação masculina. É verdade que o discurso hegemônico atual é o de libertação dos papéis que aprisionam a maioria das mulheres. No entanto, os comportamentos femininos não são tão livres assim; muitos valores mais tradicionais permanecem internalizados. Existe uma enorme distância entre o discurso libertário das brasileiras e seu comportamento e valores conservadores.

Não pretendo alimentar a ideia de que as mulheres são as piores inimigas das mulheres, mas provocar uma reflexão sobre os mecanismos que fazem com que a lógica da dominação masculina seja reproduzida também pelas mulheres. Nessa lógica, como argumentou Pierre Bourdieu, os homens devem ser sempre superiores: mais velhos, mais altos, mais fortes, mais poderosos, mais ricos, mais escolarizados. Essa lógica constitui as mulheres como objetos, e tem como efeito colocá-las em um permanente estado de insegurança e dependência. Delas se espera que sejam submissas, contidas, discretas, apagadas, inferiores, invisíveis.

Com base nos dados das pesquisas que realizei nas últimas três décadas, em um universo de 5 000 homens e mulheres de 18 a 96 anos, percebe-se que elas podem se tornar cúmplices da lógica da dominação masculina quando acreditam que os homens devem, sim, ser “superiores” e também quando estigmatizam aquelas que fazem escolhas consideradas fora dos padrões socialmente desejados. Diante da pergunta sobre o que mais invejam nos homens, elas disseram, em primeiro lugar, a liberdade e, em seguida, “fazer xixi em pé”. Invejam a liberdade masculina com o próprio corpo, a liberdade sexual, a liberdade de brincar e rir de qualquer bobagem. Já em outras mulheres, elas invejam a beleza, a juventude e a sensualidade. Inúmeras mulheres, especialmente entre 25 e 45 anos, demonstram estar muito insatisfeitas, frustradas, deprimidas e exaustas. Elas reclamam de falta de tempo, falta de reconhecimento e falta de liberdade. Também perguntei aos homens o que eles mais invejam nas mulheres. Não houve dúvida. Eles responderam categoricamente: nada.

Por mais paradoxal que possa parecer, essas mesmas mulheres que invejam e valorizam tanto a liberdade masculina criticam — e até insultam — aquelas que adotam comportamento mais livre e recusam os modelos femininos tradicionais. A pesquisa que realizei para o meu livro Por que os Homens Preferem as Mulheres Mais Velhas? revela o preconceito feminino com relação às que invertem a lógica da dominação masculina.

O depoimento de uma mulher de 47 anos é bastante revelador, já que ela está em seu terceiro casamento, desta vez com um homem de 33 anos. “Meu filho é um rapaz lindo e inteligente. Não consigo entender como ele se casou com uma velha gorda e horrorosa. Lógico que só pode ser por interesse, pois ela banca todas as despesas. Não suporto ver meu filho com uma velha decrépita, que já tem netos. Como a minha nora pode ser mais velha do que eu?” Em muitos casos, são as próprias filhas e as amigas mais chegadas que reforçam os preconceitos existentes. “Minha mãe está namorando um cara que parece filho dela. Morro de vergonha: uma velha ridícula desfilando de minissaia com um garotão que poderia ser o meu namorado. As melhores amigas da minha mãe concordam plenamente comigo: ela deveria estar aposentada nesse setor, cuidando dos netos. Minha irmã acha que ela está ficando gagá.”

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No livro Coroas, apresento um estudo comparativo entre mulheres brasileiras e alemãs com idade entre 40 e 60 anos. Muitas brasileiras afirmam ter sucesso profissional, independência econômica, maior escolaridade e liberdade sexual, mas se mostram extremamente preocupadas com o excesso de peso, têm vergonha do corpo e pânico de envelhecer. Já as alemãs se mostram muito mais seguras no discurso e na prática, mais confortáveis com o próprio corpo e o envelhecimento, e enfatizam a riqueza desta fase da vida, suas realizações profissionais, intelectuais e afetivas.

A decadência do corpo, a falta de homem e a invisibilidade social marcam o discurso das brasileiras. De diferentes maneiras, elas me disseram: “Sou uma mulher invisível, uma mulher transparente, uma mulher ‘nem-nem’: nem jovem, nem velha”. Após décadas de lutas pela libertação das mulheres, depois de Leila Diniz se tornar um ícone da revolução comportamental dos anos 1960 ao exibir de biquíni a barriga de grávida na Praia de Ipanema, as brasileiras ainda demonstram preconceitos associados à sexualidade e ao corpo.

Um caso que exemplifica o preconceito de mulheres contra mulheres aconteceu em 2013, no Rio de Janeiro. As fotos de Betty Faria de biquíni na praia, aos 72 anos, foram divulgadas na internet. A atriz foi massacrada pelas mulheres, xingada de velha ridícula, baranga e sem noção. Reagiu indignada: “Então querem que eu vá à praia de burca, que me esconda, que me envergonhe de ter envelhecido? E a minha liberdade? Depois de tantas restrições alimentares, remédios a tomar, exercícios a fazer, vícios a evitar, ainda preciso andar de burca?”.

As minhas pesquisadas também falam dos preconceitos de mulheres jovens, que, apesar de seus discursos libertários, podem ter práticas discriminatórias. Uma professora de 61 anos me disse: “Já vi algumas alunas fazendo fofoca e xingando as colegas que são mais livres sexualmente de periguetes, vagabundas, vacas, piranhas. Fico chocada de ver jovens que falam tanto de feminismo, liberdade, empoderamento, sororidade, sendo tão preconceituosas, violentas e cruéis com outras mulheres”.

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Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir escreveu que não definiria as mulheres em termos de felicidade, e sim de liberdade. Ela acreditava que, para muitas, seria mais confortável suportar uma escravidão cega do que trabalhar para se libertar. A filósofa francesa afirmou que a liberdade é assustadora, e que, por isso, muitas mulheres preferem a prisão à sua possível libertação. No entanto, ela acreditava que só existiria uma saída para as mulheres: recusar os limites que lhes são impostos e procurar abrir para si e para todas as outras os caminhos da libertação.

Em um momento de importantes lutas e conquistas feministas, é vital compreender as motivações individuais e as pressões sociais que levam tantas mulheres a aceitar e fortalecer, com seus medos e inseguranças, os preconceitos e estigmas com relação a determinados comportamentos femininos. Fica, então, a pergunta: o que cada uma de nós está fazendo para deixar de ser cúmplice da lógica de dominação masculina e prisioneira de modelos de “ser mulher” que excluem grande parte das brasileiras?

* Mirian Goldenberg é antropóloga, professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de A Bela Velhice

Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572

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