O drama nacional do ensino médico
A formação dos profissionais de medicina no país vem sendo posta em xeque em razão da abertura indiscriminada de faculdades
A expectativa de todo paciente é ser bem atendido pelos médicos, o que implica receber tratamento clínico de forma apropriada e, também, ser acolhido afetivamente. Quando isso não ocorre, pode advir um sentimento de insegurança — e até mesmo de frustração. O fato é que o médico, para exercer sua missão com competência e sabedoria, necessita acumular conhecimentos, desenvolver habilidades técnicas, ser ético, ter o comportamento moldado pelo humanismo e, mais ainda, saber comunicar-se com o doente e seus familiares.
O médico começa a ser delineado já quando estudante. Assim, o que se espera de uma faculdade de medicina? Pelo menos isto: 1) currículo ajustado do ponto de vista pedagógico e que capacite seus alunos a se prepararem para o mercado de trabalho; 2) professores que não apenas transmitam informações técnicas mas, por meio de seu comportamento, atuem como verdadeiros mentores para os estudantes; 3) acesso a um hospital-escola que permita aos alunos ter a oportunidade de conhecer as doenças e os doentes, além de aprender a desenvolver a mágica relação médico-paciente. Esses três aspectos essenciais possibilitam que, ao longo dos anos, o estudante amadureça a compreensão do que significa ser, no sentido mais amplo, um indivíduo que cuidará de seus semelhantes.
Infelizmente, o que está acontecendo com o ensino médico no Brasil vai na contramão do melhor caminho para formar bons profissionais, em razão da abertura indiscriminada de faculdades de medicina nos últimos quatro anos, algo alarmante e inédito no mundo. Nesse curto período de tempo, foram autorizadas a funcionar mais de 100 faculdades, quando já tínhamos cerca de 200, sob o pretexto de descentralizar a formação dos médicos e de que o país precisaria de um número maior desses profissionais para atender a população. Isso ocorreu apesar de avaliações internacionais mostrarem que a questão da distribuição dos médicos pelo território geográfico não se resolve com a descentralização da sua formação. Essa incomum situação gera um drama cujos desdobramentos exigirão, em futuro próximo, contundentes atitudes das autoridades e dos envolvidos com a qualidade do ensino médico. Acompanhe.
Ato I — Quantos médicos são necessários para o Brasil? Vários estudos estabelecem correlações entre o número de médicos e a população, sem considerar as dezenas de especialidades existentes. Elas variam de três a dez profissionais por 1 000 habitantes. Se todas as novas faculdades forem mantidas, em breve estarão sendo formados no país mais de 30 000 médicos por ano! Tendo em vista que esses profissionais exercem suas atividades, em média, por quarenta, 45 anos, em menos de vinte chegaremos ao inusitado número de 1 milhão de médicos ativos no Brasil, algo muito além do desejado e recomendável. Pior: essa conta não deve ser vista como uma simples divisão de médicos por habitantes, pois existe um fator externo de suma importância — a distribuição de profissionais país afora, ditada pelo mercado de trabalho — que tende a deixar algumas regiões com excessivo número de médicos e outras desprotegidas. Esse cenário sem dúvida se associa a um enorme desperdício de formação de recursos humanos e de investimentos financeiros, com os quais a sociedade brasileira não deve arcar.
Ato II — As novas faculdades, e mesmo algumas antigas, estão aptas a formar adequadamente os médicos? A resposta imediata é “não!”. A primeira restrição diz respeito ao corpo docente, já que a boa formação depende de professores capacitados para o mister de ensinar. Embora os cursos médicos devam comprovar um número mínimo de mestres e doutores para o seu funcionamento, não existe fiscalização dessa exigência, tanto que a prática de algumas das novas escolas tem sido demitir doutores após a autorização oficial de funcionamento, uma vez que são docentes mais caros e diminuem o lucro de investidores mais interessados nos resultados financeiros do que no projeto educacional. De maneira complementar, com essa nova pletora de faculdades, seguramente faltarão docentes qualificados — não existem professores em número suficiente para tantas faculdades! Achar que médicos locais, mesmo que competentes, poderão ser bons mestres é, no mínimo, ingenuidade. Uma alternativa que também não é boa é a dos professores itinerantes, aceitável apenas para algumas atividades básicas, pois, nesse caso, eles terão convívio apenas esporádico com os alunos, o que não favorece a interação e o aprendizado pelo exemplo constante, algo essencial para a educação médica. E tudo isso porque estamos falando, nesse ponto, apenas de ensino, ficando quase implícito que em tal modelo a pesquisa não fará parte da rotina dessas faculdades.
É preciso avaliar o perfil do médico do futuro em função das mudanças na população e de um maior uso das novas tecnologias
Um comentário adicional: mais de 60% das novas faculdades são privadas, abertas em sua maioria em cidades de porte médio, o que sugere serem elas um bom negócio e — por que não? — com forte apelo político. Suas mensalidades variam de 6 000 a 16 000 reais, e isso sabidamente gera um grande ônus para os estudantes e sua família, com o risco de os alunos ainda estarem comprando gato por lebre.
A segunda restrição é o acesso a hospitais- escola. Eles não são apenas instituições assistenciais, pois dependem de médicos que, acumulando as funções dessa natureza e também as docentes, supervisionam as atividades dos estudantes e dos residentes. Querer formar médicos sem um apropriado hospital-escola, próprio ou conveniado, é querer formar músicos sem dar a eles instrumentos para tocar!
Ato III — E a residência médica para todos, como fica? A capacitação de um médico para exercer qualquer especialidade, até mesmo de generalista, exige formação pós-graduada lato sensu, que é a residência médica. Acontece que hoje em dia existe para a residência médica o mesmo questionamento que se faz em relação à adequação dos cursos de graduação em medicina: vagas, docentes e infraestrutura. Com a real impossibilidade de oferta de novos programas de residência com a qualidade que supra as necessidades, o que se verá é um enorme contingente de novos médicos tendo de achar seu lugar no mercado de trabalho sem a devida qualificação. Tanto isso é verdade que, nos dias atuais, profissionais menos qualificados acabam indo trabalhar nos lugares mais inóspitos, muitos deles em serviços de emergência, que deveriam contar não com os médicos menos preparados, e sim com aqueles de maior experiência!
Ato IV (e final) — A pergunta maior: o que fazer? Recentemente, o Ministério da Educação (MEC) deu a largada para começarmos a resolver o problema, instituindo uma moratória de cinco anos para a abertura de escolas de medicina, que é o tempo mínimo para planejar e criar as condições para os passos seguintes. Como exemplo, temos os Estados Unidos, que passaram por um processo semelhante há mais de 100 anos, o que levou a uma grande depuração das faculdades de medicina, ajudando a elevar tremendamente a qualidade do ensino na área desde então. Outro importante exemplo foi o do Japão, que na década de 80 estabeleceu uma moratória de trinta anos — trinta! —, a qual permitiu a reformulação de suas faculdades de medicina. No Brasil, precisamos aproveitar essa recém-criada janela de oportunidade para desenvolver e começar a aplicar mecanismos que possibilitem ao país encontrar respostas que definam o número apropriado de faculdades e suas correspondentes vagas em número condizente com as necessidades nacionais, bem como os critérios para formar médicos com qualidade e as condições para tanto. São tópicos fundamentais para avaliar: 1) o dimensionamento real do problema. Faltam informações, e nem todas as disponíveis são de fato confiáveis. Precisamos conhecer melhor o que ocorre em termos de acesso e qualidade às atenções de saúde, seja no setor público, seja no privado, para que se possa definir a tipologia das escolas de medicina aplicável ao contexto brasileiro e antever, com mais precisão, o número de médicos que o país necessita a curto, médio e longo prazo, considerando a distribuição geográfica e a epidemiologia das doenças, bem como a idade da população, que envelhece rapidamente; 2) o desenho do perfil do médico do futuro, a exemplo do que faz o Reino Unido, em função das mudanças populacionais e das possibilidades de incorporação de novas e transformadoras tecnologias; 3) as ações necessárias para melhorar a má distribuição não só dos médicos como também dos vários outros profissionais de saúde, motivando-os para novos caminhos, tendo em conta incentivos, salários e plano de carreira; 4) por fim, é absolutamente imprescindível que se criem e se apliquem critérios para avaliar as atuais e futuras faculdades de medicina, e também os seus alunos, não unicamente durante o período de graduação, mas sim ao longo da vida profissional, algo que já vem sendo desenvolvido.
Somente com o firme compromisso a longo prazo do Ministério da Educação, como fiador dessa extensa e difícil missão, é que se poderá almejar ter no Brasil um processo de formação de médicos cuja tônica seja a qualidade profissional. A participação das entidades médicas, já bastante envolvidas com o tema, será sempre fundamental e de grande valia para a consecução das propostas de melhoria da qualificação dos médicos.
Finalmente, se pretendemos mesmo oferecer atendimento de qualidade a nossa população, temos de entender que médicos devidamente qualificados são peças-chave. Entretanto, é preciso deixar muito claro que essas não são as únicas peças de um complexo sistema de saúde, que precisa ser constantemente aprimorado para melhor atender a população.
* RAUL CUTAIT Médico, professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e cirurgião do Hospital Sírio-Libanês
** CARLOS DEL NERO Médico, doutor em economia pela London School of Economics e consultor do Ministério da Educação (MEC)
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593