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O ditador mora ao lado

Com uma Assembleia Constituinte instalada sem representantes da oposição, o governo de Nicolás Maduro sepulta a última instituição democrática da Venezuela

Por Johanna Nublat, de Caracas, e Leonardo Coutinho, de Washington
Atualizado em 30 jul 2020, 20h40 - Publicado em 5 ago 2017, 06h00

A Venezuela tornou-se, por fim, uma ditadura. É o primeiro regime abertamente autoritário da América do Sul neste século. Na sexta-feira 4, tomou posse a Assembleia Nacional Constituinte, eleita (o termo correto seria nomeada, já que não houve participação de opositores) no domingo anterior. Com isso, o presidente Nicolás Maduro pretendia dissolver a Assembleia Nacional, o último poder da república que ainda não havia dobrado os joelhos para o chavismo. Como a Constituinte terá mais poder que Maduro — poderá inclusive destituí-­lo —, ele tratou de pôr a própria mulher, Cília Flores, e o filho, Nicolás Ernesto Maduro Guerra, entre seus integrantes.

As principais nações do mundo condenaram o regime venezuelano, com exceção da Rússia e da China. O Vaticano pediu o cancelamento do plano de reescrever a Carta Magna, processo no qual o próprio papa Francisco se empenhava. No início da semana, o governo americano publicou o seguinte aviso no site do seu Departamento do Tesouro, ao anunciar retaliações financeiras: “As eleições ilegítimas de ontem confirmaram que Maduro é um ditador que desrespeita o desejo do povo”. Não era preciso esperar pelo veredicto americano para chegar à mesma e óbvia constatação que já está na boca até dos mais humildes cidadãos venezuelanos há meses: “A Venezuela é uma ditadura faz tempo, a eleição da Constituinte só confirmou o que já se sabia”, diz o balconista Israel Manrique, de 41 anos, que trabalha em uma loja de embutidos e laticínios no bairro de Bello Monte, em Caracas.

Maduro dava sinais de que pretendia endurecer o regime desde que se negou, no fim do ano passado, a realizar um referendo, previsto na Constituição, para decidir sobre sua permanência no poder. O referendo havia sido convocado, dentro dos termos da lei, pela Assembleia Nacional, cuja maioria de opositores foi eleita democraticamente em dezembro de 2015, mas que nunca conseguiu legislar apropriadamente. No fim de março, Maduro deu um golpe no Parlamento. Com a ajuda da Suprema Corte, dominada por juízes chavistas, ele suspendeu uma série de poderes e direitos dos deputados. Anulou a imunidade dos parlamentares e transferiu para o Executivo as atribuições legislativas. Esse gesto autocrático foi o gatilho que disparou os protestos de rua no país, que perduraram até o dia da votação da Constituinte, cuja convocação, por Maduro, não cumpriu os ritos previstos em lei — entre os quais a coleta de assinaturas populares e a adoção de regras equânimes para a escolha dos deputados.

Segundo o general venezuelano Hebert García Plaza, que vive no exílio nos Estados Unidos, a estratégia de Maduro é incendiar o país. “A decisão de anular poderes do Legislativo fez parte de uma narrativa. O regime precisava do caos para convocar novas eleições”, diz García Plaza. O aumento da repressão policial faz parte dessa estratégia. Mais de 5 000 pessoas foram presas nos últimos quatro meses nos protestos contra o governo, segundo a ONG de direitos humanos Provea. Os mortos já passam de 130. Mesmo na conturbada história venezuelana, não há nada parecido. Em 2014, quando também houve manifestações contra Maduro, o saldo foi de 43 mortos e 3 351 detidos.

Na quarta-feira passada, foram levados pela polícia política, de maneira arbitrária, os opositores Leopoldo López e Antonio Ledezma. López, que já havia ficado três anos preso e há apenas um mês fora enviado para casa, voltou aos calabouços horas depois de anunciar em vídeo na internet, ao lado da mulher, Lilian Tintori, a gravidez do seu terceiro filho. Ledezma foi arrancado de sua casa ainda de pijama, de madrugada. Ambos, privados do contato com seus advogados, foram levados para a prisão militar de Ramo Verde, nos arredores de Caracas. Nesse cárcere estão detidos, atualmente, 105 civis e 328 militares. Desse total, 205 foram presos somente neste ano — dos quais 75 respondem pelo crime de traição à pátria. Na sexta-feira, Ledezma, e apenas ele, foi devolvido à prisão domiciliar.

Além de prender líderes da oposição, Maduro direcionou o foco da repressão para juízes independentes. Em uma situação que lembra a do Chile de 1973, quando o general Augusto Pinochet deu um golpe de Estado e centenas de pessoas invadiram os quintais das embaixadas de Santiago para pedir asilo, na semana passada seis venezuelanos entraram na casa do embaixador do Chile e na representação diplomática do Panamá, em Caracas, em busca de refúgio. Entre eles, havia o dirigente de um partido de oposição e ao menos quatro juízes recentemente nomeados pela Assembleia Nacional (a que foi eleita democraticamente) para integrar o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). Como Maduro tinha apontado magistrados para essa corte de maneira ilegal, os deputados escolheram outros 33 nomes para substituí-­los. Muitos dos que se preparavam para assumir no TSJ agora estão na clandestinidade. O medo entre eles se espalhou após a detenção do magistrado Ángel Zerpa Aponte, em 22 de julho, pela polícia política. Zerpa foi mandado para um tribunal militar, acusado de traição à pátria. Os magistrados nomeados pela Assembleia tiveram as contas bancárias bloqueadas e a família ameaçada.

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VEJA entrevistou um desses juízes, Pedro Troconis, na última semana. “Jamais pensei passar por uma situação dessas. Era 1 da manhã do dia 25 passado, uma terça-feira, quando dezoito funcionários com máscara e fortemente armados bateram à porta da casa da minha sogra perguntando por mim. Eles também puseram um segurança em frente ao meu escritório”, diz Troconis, que desde então vive escondido.

Maduro já avisou que seu próximo passo será esmagar as vozes rebeladas na Procuradoria da República, cuja chefe, Luisa Ortega, antes alinhada com o chavismo, abriu um processo por fraude na votação da Constituinte. “Vamos reestruturar a Procuradoria de imediato, declará-la em emergência e tomar o controle dela”, disse Maduro. As eleições na Venezuela, ao longo de quase todo o período chavista, foram pesadamente manipuladas para produzir resultados favoráveis ao governo, ainda que em mais de uma ocasião isso não tenha sido suficiente. Não funcionou no referendo da reforma constitucional de 2007, que foi rechaçada pelos venezuelanos, nem no pleito legislativo de 2015 e em diversas eleições para governadores e prefeitos. Na votação de domingo, porém, a farsa chegou ao ápice. Na quarta-feira 2, o venezuelano Antonio Mugica, presidente da empresa Smartmatic, responsável pelo processo da votação eletrônica, anunciou em uma coletiva de imprensa em Londres que o dado sobre o comparecimento na eleição fora exagerado em pelo menos 1 milhão de votos. Segundo o governo, a presença nas urnas foi de 41,5% do eleitorado. Pelos números da Smartmatic, foi de 36%. A oposição, que monitora a votação por meio de uma rede de informantes entre os mesários, diz que apenas 12% dos venezuelanos foram votar. “O governo declarou que houve mais gente votando do que nas eleições passadas, mas o número de zonas eleitorais diminuiu. A fraude é praticamente uma certeza”, afirma a consultora eleitoral Florência Ferrer, de São Paulo.

A acusação feita pela Smartmatic é, no mínimo, curiosa. A empresa foi criada para atuar em eleições na Venezuela há treze anos. Uma de suas subsidiárias no exterior já teve como sócio direto o governo venezuelano, que era dono de 28% do capital e chegou a indicar um alto funcionário da Justiça Eleitoral para sua diretoria. A sociedade foi descoberta depois de uma tentativa fracassada da empresa de entrar no mercado americano. Numa eleição em Chicago, em 2006, houve desaparecimento de urnas e incongruências entre os votos registrados digitalmente e aqueles impressos. A Smartmatic também já atuou em duas eleições no Brasil. Em 2012, fez parte de um consórcio responsável pela manutenção e modernização de todas as urnas eletrônicas utilizadas no país. Em 2014, ganhou contratos com diversos Tribunais Regionais Eleitorais para a transmissão de dados. A filial registrada na Junta Comercial de São Paulo está em nome de duas offshores holandesas. Apesar disso, a empresa apresentou-se nos contratos oficiais como sendo sediada em Barbados. Em sua página oficial, define-se como inglesa. Para um funcionário do Departamento do Tesouro americano ouvido por VEJA, a virada da Smartmatic se explica porque a empresa quer se eximir de qualquer culpa e livrar-se de possíveis sanções por parte do governo dos Estados Unidos.

BARRICADA – Reop, cozinheiro que abandonou o trabalho para se dedicar à resistência, em Bello Monte, Caracas (Vladimir Marcano/VEJA)

A pressão americana é grande. Na semana passada, a administração do presidente Donald Trump incluiu Maduro em uma lista de 23 chavistas cujo acesso ao sistema financeiro americano foi bloqueado. Isso significa que eles estão impedidos de manter contas em bancos americanos, de ter cartões de crédito e de fazer transferências em dólar no mercado oficial. Um dos mais afetados por essas sanções é o vice-­presidente venezuelano Tareck El Aissami. Os americanos já localizaram 500 milhões de dólares em bens e fundos do chavista, que é acusado de participação no tráfico internacional de cocaína. Em Miami, foram confiscados três apartamentos com valores entre 2 e 5 milhões de dólares. Na lista de bens há dez carros de luxo e um jato Gulfstream de 5 milhões de dólares. Todo o inventário de El Aissami está em nome do laranja Samark López, que fez fortuna como fornecedor de cestas básicas para o Estado venezuelano.

Um obstáculo para conseguir que Maduro e seus subordinados parem com a repressão é o receio deles de ser julgados futuramente por crimes diversos, como narcotráfico, tortura, sequestro e assassinatos. A solução pode ser indigesta. “Maduro só abrirá mão da Presidência se tiver a garantia de não ser condenado. Com os militares é a mesma coisa. Uma possibilidade seria dar anistia para todo mundo, para os oposicionistas e para os governistas”, diz o embaixador Rubens Barbosa. Nem as sanções, nem a anistia aos líderes chavistas, porém, prometem resolver a situação no médio prazo. Os mais pessimistas, nas ruas de Caracas, já falam em guerra civil. Grupos de jovens mascarados organizam trincheiras com sacos de terra e exibem, orgulhosos, as feridas provocadas pelas balas dos policiais. Eles se dizem membros da resistência e falam sobre a necessidade de invocar o patriotismo. “É preciso mudar totalmente a política na Venezuela. Todos são corruptos”, diz um deles, que se identifica como Reop, de 27 anos, que abandonou a profissão de cozinheiro para se dedicar aos embates com a Guarda Bolivariana.

PERSEGUIÇÃO – Leopoldo López com a mulher, Lilian Tintori, anunciando a terceira gravidez dela: preso em seguida (Lilian Tintori Prensa/Reuters)

Para o Brasil, o impacto imediato da crise política e econômica no país vizinho será o aumento no número de refugiados venezuelanos. “Mais dinheiro federal e o Exército terão de ser mobilizados para abrigar essas pessoas”, diz Pio Penna, professor de relações internacionais na Universidade de Brasília. Na semana passada, para evitar que os venezuelanos entrem clandestinamente em Roraima e se submetam a subempregos, o governo brasileiro deixou de cobrar pelo visto de permanência. Diz Oliver Stuenkel, do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo: “Mais do que as consequências de uma ditadura, vamos lidar com um Estado falido. A Venezuela poderá ser o principal tema de nossa política externa pelos próximos dez ou quinze anos”. O perigo mora ao lado.

Com reportagem de Luiza Queiroz

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Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542

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