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O deserto feito pelo medo

A passividade nas ruas da Venezuela nas últimas semanas é resultado da decepção popular com a oposição e da repressão brutal da ditadura de Maduro

Por Johanna Nublat, de Caracas
Atualizado em 25 ago 2017, 15h14 - Publicado em 25 ago 2017, 06h00

No dia 28 de junho, uma quarta-feira, o técnico em eletrônica Elvio Lorenzo Lanz, de 44 anos, desceu do prédio onde trabalha, no bairro de Sabana Grande, em Caracas, para buscar o cunhado. Temia que ele, que participava de um protesto contra o presidente Nicolás Maduro, estivesse sofrendo com os efeitos das bombas de gás lacrimogêneo lançadas pelas forças de segurança. Na calçada, avistou integrantes da Polícia Nacional Bolivariana (PNB), de moto, vindo em sua direção. Saiu correndo e entrou pela primeira porta que achou. “Quando me virei, ouvi uma forte explosão e meus óculos caíram. Senti muita dor, sangue escorrendo pelo meu rosto, e perdi os sentidos”, diz ele. A cena foi flagrada por um vizinho, que a gravou em vídeo. As imagens mostram como, da garupa de uma moto, a apenas 3 metros de distância, um policial aponta sua escopeta contra Lanz e dispara um cartucho de plástico recheado com esferas de metal que se espalham no ar. As bolotas são chamadas de perdigones — uma referência à munição empregada na caça de perdizes, com a diferença de que, nesse caso, as esferas de chumbo são muito menores que as usadas pelas forças de repressão venezuelanas. Dois perdigones atingiram o maxilar de Lanz. Três perfuraram seu olho direito, e ele perdeu mais de 80% da visão. Trabalhar com peças pequenas de eletrônica ficou quase inviável. “Estou há trinta anos nessa profissão, que eu amo, e agora me encontro nesta condição. Mal consigo dormir”, diz Lanz.

Perdigones – Esferas de metal disparadas pela polícia nos protestos (Vladimir Marcano/VEJA)

Desde que a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) chavista foi instalada, de maneira ilegítima, em 4 de agosto, escancarando o regime ditatorial que vigora na Venezuela, os ânimos nas ruas do país esfriaram. O Observatório Venezuelano de Conflito Social, uma organização independente, estima que em agosto o número de protestos tenha caído 80% em relação a julho, mês em que ocorreram cerca de 1 700 atos contra o governo. Um dos motivos para a calmaria é a frustração com a oposição, que não conseguiu fazer frente ao desmonte das instituições democráticas. Outro é a repressão brutal do governo. Em pouco mais de cinco meses, 163 pessoas morreram e mais de 4 000 ficaram feridas nos embates com as forças de segurança, como a PNB, a Guarda Nacional Bolivariana (GNB), o Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) e os colectivos, grupos de civis armados que andam de moto espalhando o terror na população.

Vídeos e fotos da violência contra civis foram replicados nas redes sociais e provocaram intensa comoção. Em um deles, gravado em 13 de julho em Lechería, 320 quilômetros a leste de Caracas, policiais de moto cercam Gianni Scovino, de 33 anos. Ele estava em um estacionamento conhecido por ser o foco de manifestações quando foi atacado por quatro membros da PNB e outros quatro da GNB. Golpeado com socos, armas pesadas e até com um escudo (veja as imagens acima), Scovino sofreu traumatismos múltiplos e danos no fígado.

Gianni Scovino, colaborador de ONG ambientalista, 33 anos. 1. Montados em motocicletas, integrantes da Guarda Nacional Bolivariana e da polícia se aproximam de Scovino, na cidade de Lechería, e começam a golpeá-lo com socos e com uma arma, em 13 de julho; 2. Scovino tenta se esquivar, mas logo desiste e continua sendo ferido violentamente; 3. Depois de cair no chão, ele passa a receber chutes e golpes de cassetete; 4. Um membro das forças de segurança ataca Scovino repetidas vezes com um escudo em que se lê “PNB”, a sigla da Polícia Nacional Bolivariana; 5. Scovino é colocado na garupa de uma moto com um policial na frente e outro atrás, mas consegue descer e a brutalidade recomeça; 6. Os policiais discutem sobre o que fazer. Com a cabeça já ensanguentada e quase sem reação, Scovino é carregado pelos braços e pelas pernas para cima de uma motocicleta e levado a um hospital (//Reprodução)

Um termômetro mais preciso da violência estatal são os registros médicos dos hospitais venezuelanos. Em abril, depois que Maduro fez sua primeira tentativa de suprimir as funções do Legislativo, incitando os protestos, os manifestantes levados aos hospitais sofriam com os efeitos do gás lacrimogêneo e apresentavam traumas leves, como pé torcido. “Naquele momento, as marchas percorriam um trajeto predeterminado até serem interrompidas pela polícia”, explica o epidemiologista Julio Castro, de Caracas. Na virada de abril para maio, o perfil mudou. Começaram a aparecer pessoas feridas pelo impacto direto de cilindros de gás lacrimogêneo disparados à queima­-roupa por escopetas, agressão cujas consequências eram traumatismo no tórax e mortes. Foi nesse momento também que os perdigones passaram a ser empregados de perto pelas forças de segurança. Os médicos têm encontrado bolas de gude, porcas e parafusos encravados no corpo dos feridos. “Os perdigones estão sendo empregados como armas de fogo a curta distância, o que não é autorizado pela nossa legislação”, diz Rafael Uzcátegui, coordenador-geral do Provea, ONG de defesa dos direitos humanos. Como os projéteis são muitas vezes improvisados, seu uso dificulta a identificação do autor do disparo. A certeza de impunidade, assim, estimula os agentes da repressão. Desde junho, os médicos vêm deparando com hematomas cerebrais causados por disparos a curta distância de bombas de gás lacrimogêneo, ossos estilhaçados em pernas e braços, órgãos internos rompidos por munição letal, queimaduras graves e outros machucados variados. “Nunca imaginei que me tornaria um especialista em ferimentos por arma de fogo”, diz um dos médicos de um hospital de Caracas, que não quis revelar seu nome por receio de sofrer alguma represália.

Na capital, o cerco repressivo tem sido maior na região oeste da cidade, onde os colectivos atuam com mais frequência. Nessa área estão concentrados prédios do poder público. “Ao longo dos anos, o chavismo baseou muito de sua força no fato de ter o apoio dessa região da cidade, mas hoje ela é majoritariamente da oposição”, diz Roberto Patiño, fundador de um movimento que ajuda as vítimas da violência pública no oeste de Caracas.

Impunidade – Ataque em Los Verdes: carro incendiado pela repressão (Vladimir Marcano/VEJA)

O conjunto habitacional Los Verdes tornou-se um ícone do desmoronamento do apoio ao chavismo nessa parte da cidade. São quatro blocos de apartamentos, cujos 4 500 moradores de classe média baixa, em sua maioria, se tornaram manifestantes entusiasmados contra Maduro. Desde junho, o local foi alvo de repressão duas vezes. Em 13 de junho, por volta das 17 horas, integrantes da GNB, do Sebin, do Comando Nacional Antiextorsão e Sequestros (Conas) e grupos de civis armados invadiram o condomínio e espalharam o terror durante uma hora e meia. Quebraram portões e janelas de vidro, roubaram câmeras de segurança e itens pessoais, atravessaram o parquinho infantil com um tanque de guerra, mataram um poodle com um disparo de bala de borracha e levaram 23 jovens detidos. “Nós nos fechamos em casa quando eles chegaram. Roubaram dólares, computadores e comida. Chegamos a um ponto insustentável, a uma ditadura”, diz a contadora Nathaly Alfaro, de 35 anos. Em 30 de julho, a polícia retornou, mas não conseguiu entrar com veículos no condomínio porque foi impedida por barreiras erguidas pelos moradores. Em retaliação, os repressores atiraram contra os prédios e queimaram um carro na garagem.

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Muitos dos civis presos nas manifestações dos últimos meses foram levados para tribunais militares, uma prática vetada pelas leis internacionais e da própria Venezuela. Entre 1º de abril e 15 de agosto, 655 civis foram conduzidos a julgamentos militares. Nas prisões, muitos sofrem torturas. Um dos jovens que enfrentaram as masmorras do regime é Esteban Rodriguez, de 26 anos. Ele é um dos integrantes da “resistência”, grupo de jovens que estão na linha de frente dos protestos. Rodriguez ficou 26 dias preso, acusado de resistir às autoridades e trair a pátria. Levou golpes na cabeça e nas costelas e foi ameaçado com armas de fogo. Os torturadores também esfregaram pimenta e pó de bomba de gás lacrimogêneo em seu rosto. Rodriguez ainda teve de dividir a cela com estupradores e homicidas. Segundo Carlos Nieto Palma, coordenador da Una Ventana a la Libertad (Uma Janela para a Liberdade), ONG que atua nas penitenciárias do país, os métodos de tortura mais usados incluem dar choques elétricos nos genitais e fazer os detidos ficar longos períodos amarrados. “O governo chama esses meninos de terroristas, mas eles só querem liberdade. Terrorismo é a repressão do Estado”, diz Palma.

Zugeimar Armas, professora auxiliar, 36 anos. No dia 7 de junho, Zugeimar foi a uma passeata em Caracas acompanhada do filho Neomar, de 17 anos, e de outros familiares. No caminho, ela se afastou do grupo e não conseguiu mais achar o filho. Horas depois, um amigo recebeu uma ligação e começou a chorar ao seu lado. Neomar estava morto. Acredita-se que ele tenha sido atingido no peito por uma bomba de gás lacrimogêneo. “Quando cheguei ao hospital, a médica me abraçou, chorando, e disse que não pôde fazer nada”, conta ela, cuja camiseta estampa uma foto de Neomar tirada durante um protesto (Vladimir Marcano/VEJA)

Embora não haja dúvida de que a Venezuela se tornou uma ditadura, a aplicação da definição de terrorismo de Estado não é uma unanimidade. No século passado, ditaduras latino-americanas praticaram vários atos com o objetivo de provocar o medo e conter grupos específicos. “Um bom exemplo são os ‘voos da morte’ na Argentina e o tratamento dos prisioneiros na Escola Superior de Mecânica da Armada, a ‘Auschwitz argentina’, para onde 5 000 pessoas foram levadas — e de onde desapareceram”, afirma Thomas Wright, especialista em história política da América Latina da Universidade de Nevada, nos Estados Unidos. Para ele, a Venezuela ainda não chegou a esse ponto extremo porque a repressão está direcionada principalmente para os manifestantes. Mas o limite é dramaticamente tênue. “A Venezuela pode estar à beira de ter o terrorismo de Estado institucionalizado”, diz Wright. Surpreendentemente, uma parte dos venezuelanos entende que é preciso manter-se nas ruas, mesmo que seja para honrar os que morreram. Um deles é Zugeimar Armas, de 36 anos, cujo filho Neomar Lander, de 17 anos, morreu durante um protesto em 7 de junho. “Meu filho perdeu a vida lutando por um futuro melhor. A melhor justiça é continuar batalhando para que este governo saia de uma vez por todas”, diz a mãe, que carrega o rosto de Neomar estampado na camiseta e em uma tatuagem na perna.

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