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Não, senhores, não pode mais

Denúncias de assédio sexual e as novas condutas pautadas pelo feminismo fazem empresas vetar caronas, beijinhos e outras interações entre homens e mulheres

Por Fernanda Bassette e João Pedroso de Campos
Atualizado em 31 jan 2018, 15h26 - Publicado em 5 jan 2018, 06h00

Um gerente chega ao escritório e, ao ser apresentado a uma nova funcionária, cumprimenta-a com um beijo no rosto. Na sequência, recebe a portas fechadas membros da sua equipe para avaliações individuais, incluindo a estagiária. Ao dar bom-dia à secretária, elogia o seu perfume. Mais tarde, aceita o convite para a happy hour da firma e oferece carona a uma subordinada. No fim do dia, agradece a uma funcionária no WhatsApp por uma tarefa bem executada e despede-­se com “bjs”. Se você, leitor, nem desconfia que pode haver algo de condenável nas atitudes do nosso gerente, esteja certo de que corre os mesmos riscos que ele. Hoje, pelas regras de muitas empresas, esse chefe hipotético teria batido um recorde de condutas inadequadas — e, a depender da visão de seus colegas e patrões, poderia ser um sério candidato ao título de assediador da turma.

Sim, os códigos de conduta entre os sexos estão passando por uma transformação radical, impulsionada pela explosão das denúncias de assédio e pela crescente afirmação feminina. E há gente confusa com isso — em particular, homens criados no tempo em que era aceitável virar a cabeça diante da passagem de um derrière feminino. Mas, ei, isso também não pode mais? Não, senhores, não pode. O mundo não apenas mudou — mudou rapidamente. Daí o fato de muitos homens reagirem com perplexidade aos olhares de repreensão provocados por algo que eles sempre fizeram e que ninguém antes lhes havia dito que não podiam fazer.

Rosana Marques
Disque-Denúncia – Na consultoria Crowe Horwath, a gerente de gestão de pessoas Rosana Marques (em pé) participou da implantação de um canal para queixas contra desvios morais: regras para evitar constrangimento (Paulo Vitale/VEJA)

Como costuma acontecer em momentos de grandes e velozes transformações, as novas regras ainda não estão claras para todo mundo. O que “pode” e o que “não pode” se embaralham, a depender do ambiente e dos protagonistas da ação. Gestos como abrir a porta para uma mulher, por exemplo, uma manifestação de cavalheirismo para a maioria, já podem parecer ofensivos para algumas mulheres, que enxergam ali um galanteio indevido. Dessa forma, episódios de grosseria explícita e atitudes sem segundas intenções correm o risco de acabar entrando no mesmo índex, penalizando igualmente machistas irremediáveis e pobres exemplares do gênero masculino francamente boquiabertos com o mundo novo. Pelo sim, pelo não, muita gente — e um número crescente de empresas — tem preferido a prevenção.

Luiz Carlos Pulini
“Almoço, só em grupo” – Sou bem mais precavido hoje do que era alguns anos atrás. Quando comecei a gerenciar uma equipe de treze vendedoras, vi que não haveria espaço para piadinhas, brincadeiras ou qualquer coisa que pudesse sugerir assédio. Passei a tomar o cuidado de não almoçar no refeitório na companhia de uma só vendedora, mas apenas em grupo. Quem está em cargo de chefia precisa agir assim. Em meu trabalho, as mulheres são a maioria. Então, não faço nenhum comentário que possa ter duplo sentido. Penso duas vezes antes de fazer uma crítica ou mesmo um pedido.
Luiz Carlos Pulini, executivo de vendas de uma distribuidora de álcool em São Paulo (Paulo Vitale/VEJA)

A rede de clínicas médicas populares dr.consulta, por exemplo, prepara para o primeiro trimestre deste ano a distribuição de uma cartilha a seus 1 000 funcionários em que proíbe, entre outras coisas, cumprimentos que incluam beijos e abraços. “Cada um tem o seu limite. Então, é melhor evitar”, justifica Anna Karla Ribeiro, diretora de gente e gestão da rede. Na GuardeAqui, líder no setor de boxes de armazenagem no país, as normas de convivência já vigoram há um ano. As proibições, nesse caso, abrangem coisas evidentes, como “solicitação de favores sexuais”, “olhares maliciosos” e “exibição de fotos sexualmente sugestivas”. Na rede dr.consulta, as novas regras de conduta incluirão um tipo de disque-denúncia destinado a acolher relatos de abuso tanto da parte de funcionários como dos 1 300 médicos credenciados. Empresas como a ­Crowe Horwath e a Intel do Brasil abriram um canal semelhante. A segunda recebe casos por e-mail e telefone — eventualmente, os episódios registrados são levados para a arbitragem do CEO. “Uma profissional se queixou de receber abraços em excesso de um colega. Falei com ele, e não aconteceu de novo”, diz Maurício Ruiz, CEO da multinacional no Brasil.

José Marcelo Bussab
“Deixo a porta da sala aberta” – Dou aulas de história há trinta anos. Ficar sozinho com alguém em uma prova ou tirando dúvidas até mais tarde sempre foi corriqueiro. Mas, com tantas reportagens sobre casos de assédio e depois de ouvir o relato de um episódio em ambiente educacional, comecei a sentir receio. Passei a tomar cuidados que nunca imaginei necessários para não dar margem a interpretações erradas. Hoje, deixo a porta da sala aberta ou procuro ter mais gente por perto em conversas individuais. E não chamo aluna para almoçar, a não ser que seja em turma.
José Marcelo Bussab, professor de cursinhos e do ensino médio em São Paulo (Paulo Vitale/VEJA)

Obviamente, nem todos os casos terminam assim tão bem. Por medo de pisarem em falso e prejudicarem sua carreira, muitos homens têm redobrado a vigilância. Para o executivo de vendas Luiz Carlos Pulini, a mudança começou quando ele passou a gerenciar uma equipe de treze vendedoras. Agora, no almoço, não aceita mais companhia individual. “É um cuidado para evitar falatórios.” Fernando Martins, CEO da tecnológica AgroTools, está no grupo dos que logo esticam o braço para cumprimentar uma mulher. “Não dou beijo e só chamo alguém para almoçar se for para tratar de trabalho, com a conta paga pela empresa. Não faço elogios a roupa nova nem a perfume”, conta. As caronas, antes inseridas no terreno da gentileza, agora derrapam em solo pantanoso. “Não basta sermos éticos, temos de parecer também. E, se a estagiária é promovida depois da carona, o que podem dizer?”, avalia Wagner Giovanini, diretor da consultoria Compliance Total.

Gwyneth Paltrow e a capa da Time
A era pós-Weinstein – A atriz Gwyneth Paltrow, que acusou o produtor Harvey Weinstein por assédio cometido há duas décadas, e as “rompedoras de silêncio”, eleitas as “pessoas do ano” na revista Time por terem trazido casos à tona: o mundo nunca mais será o mesmo (Jamie McCarthy/FilmMagic/Getty Images)

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 88% das ações de assédio sexual em 2016 se deram na esfera trabalhista. O assédio, evidentemente, pertence a uma categoria bem diferente da que abrange carona e beijo no rosto. No país, o assédio é crime previsto no Código Penal desde 2001. Incorre nele todo indivíduo que tentar obter “vantagem carnal” usando a condição de superior hierárquico ou lançando mão de sua ascendência sobre alguém. O problema está em definir com clareza a linha tênue que separa a saudável gentileza entre os sexos do momento em que começa a brutalidade do assédio. No Brasil, os processos por assédio sexual aumentaram 200% num período de três anos.

(Arte/VEJA)

A pedido de VEJA, a consultoria Kurier Analytics fez um levantamento inédito na base de dados do Conselho Nacional de Justiça. Em 2013, houve 1 530 novas ações de assédio em primeira instância. Em 2016, o número chegou a 4 450. Pelo andar da carruagem, no fim de 2017 pode ter quintuplicado (veja o quadro ao lado). Ainda que isso ocorra, os números permanecerão aquém da realidade. Se atrizes com salário de sete dígitos como Gwyneth Paltrow levaram anos para trazer à tona os abusos perpetrados por um homem com o poder de estender-lhes o tapete vermelho ou puxá-lo de seus pés para sempre, quantas assalariadas estão dispostas a pagar o alto preço de quebrar o silêncio? O caso de Harvey Weinstein — o poderoso produtor de cinema acusado em outubro de assediar nove entre dez estrelas de Hollywood, Paltrow incluída — desencadeou um rastro de denúncias de assédio mundo afora — e chegou ao Brasil. É bom que o assédio esteja sendo cada vez mais policiado e denunciado. O dado nebuloso é como tudo isso vem afetando, de modo mais amplo, as relações entre os gêneros. O Brasil, nessa história, corre o risco de estar importando certas concepções culturais dos Estados Unidos, um país cuja moral sexual é distinta da brasileira. Entre os americanos, há uma tradição puritana que nunca chegou a ser expressão majoritária por aqui. Lá, por exemplo, o beijo de cumprimento e o contato físico em geral não têm a mesma aceitação que no Brasil.

Com o alerta amarelo da acusação constantemente aceso, também aumentam os riscos de injustiça e linchamento de “réus”, pondera o sociólogo Francisco Bosco, autor do livro A Vítima Tem Sempre Razão?, editado pela Todavia. “As acusações têm misturado casos de evidente comportamento abusivo e outros em que, mesmo diante das inconsistências das denúncias, os homens são sumariamente considerados culpados pela opinião feminista.” Para Bosco, não há dúvida de que “os homens devem mudar radicalmente sua conduta em interações heterossexuais”. Mas há um equívoco no que ele chama de “convocações totalizantes” — a adesão automática de latinos a denúncias feitas por latinos; de negros a acusações oriundas de negros; de mulheres a relatos feitos por mulheres, tudo isso sem que se dê muita atenção a provas ou argumentos da defesa. “O princípio da empatia tende a fazer com que as pessoas valorizem aquelas mais parecidas com elas mesmas”, afirma Bosco. Assim, os julgamentos morais podem se tornar muito próximos do preconceito, diz o sociólogo.

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Pesquisas recentes nos Estados Unidos alertam sobre os efeitos deletérios de certos tipos de treinamento. Segundo estudo da socióloga Justine Tinkler, da Universidade da Geórgia, reforçar os estereótipos de machos poderosos e fêmeas vulneráveis acaba minando a confiança delas para ocupar espaços na hierarquia empresarial — em outras palavras, isso ameaça lançar pelo ralo o que vem sendo conquistado a duras penas nas últimas décadas pelas mulheres.

O sociólogo Michael Kimmel, professor de estudos de gênero da Universidade Stony Brook, no Estado de Nova York, considera que há uma dose de cara de pau nesse debate. “Homens mais velhos podem até ficar confusos quanto às novas condutas, mas, no que se refere aos jovens, eles dizerem que não entendem o que está mudando é uma desculpa paté­tica”, afirma. “Além disso, não é preciso que as regras tenham mudado para dizer que tocar os seios de uma mulher é inadequado. Sempre foi.”

Em linha com Kimmel, ativistas feministas têm vindo a público para criticar o que seria o “falso coitadismo” dos homens confrontados com o novo feminismo. A colunista americana Anne Victoria Clark, por exemplo, propôs um “método” para ajudar homens em dúvida quanto à própria conduta a evitar acusações de assédio. “Façam de conta que todas as mulheres são o Dwayne Johnson”, provocou, citando o ator americano conhecido como “The Rock” (A Rocha) por ser uma montanha de músculos. O método funciona mais ou menos assim: está em dúvida se coloca a mão na perna da estagiária enquanto conversam sobre uma promoção? Finja que ela é The Rock e decida. Na ironia de Anne, a resposta oferece uma diretriz infalível para guiar a conduta masculina.

Não consta que a colunista tenha perguntado se todas as mulheres gostariam de ser tratadas como Dwayne Johnson. Mas isso talvez seja conversa para daqui a alguns anos, quando os ânimos estiverem serenados, os exageros aparados e o respeito entre os gêneros não depender de consulta a cartilhas. O certo é que as novas regras de convivência entre homem e mulher não podem confundir assédio, que é um crime intolerável, com a gentileza e mesmo com o jogo saudável da sedução, que é da natureza humana. Do contrário, como na piada de Luis Fernando Verissimo, será melhor entrar para uma ordem religiosa oriental, que substitui o sexo pela contemplação da alcachofra.

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BEIJINHO, BEIJINHO? TCHAU, TCHAU

Alguns dos gestos cotidianos já estão banidos de empresas brasileiras

Falar “pegando”
Aquele colega que costuma encostar no interlocutor durante a falajá incomodava. Agora, em algumas empresas, o gesto tornou-se oficialmente inadequado. No treinamento antiassédio da Intel no Brasil, um vídeo mostra um homem tocando o ombro de mulheres. Em seguida, uma placa indica: “Pare!”. Se o contato avança para seios e nádegas, o problema passa a ser coma Justiça — casos de mulheres tocadas dessa forma terminaram, nos últimos anos,em indenizações de até 50 000 reais às vítimas.

Cumprimentar com beijinhos
O manual de conduta de alguns escritórios começa a banir a saudação, tão comum no Brasil. Em elaboração, o código da redede clínicas médicas dr.consulta deve incluir um aviso contra abraços e beijinhos no rosto. “É melhor evitar o toque, pois nunca se sabe qual é o limite da outra pessoa”, diz a gerente de gente e gestão, Anna Karla Ribeiro.

Piadas e palavrões
Empresas como a farmacêutica Bayer e a armazenadora GuardeAqui coíbem piadas maliciosas e linguagem sexualmente explícita. O comportamento será considerado pior, é claro, se fizer referência a uma funcionária específica. Um caso recente na Justiça do Rio Grande do Norte resultou em indenização de 6 700 reais por dano moral a uma profissional por “comentários com conotação sexual do superior hierárquico”.

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Elogios a roupas, perfume e forma física
Para o advogado trabalhista Denis Sarak, elogios a roupas ou ao perfume de mulheres no ambiente de trabalho não são considerados assédio se não há “conotação ofensiva”. Mas como ter certeza desse limite?Algumas empresas e organizações orientam a equipe a evitar esse tipo de comentário. “Pode ser entendido de outra forma e causar problemas”, diz o superintendente do Sesi José Antonio Fares.

Dar carona a colegas
Empresas com códigos mais detalhados têm aconselhado carona entre colaboradores apenas quando mais de duas pessoas embarcarem. Já para o sociólogo americano Michael Kimmel, deixar de transportar uma colega por medo de consequências é uma reação “desonesta” dos homens. “Não há nada de problemático em ser gentil com alguém do trabalho, desde que você não pense que isso lhe dá o direito de fazer alguma coisa.”

Reuniões a portas fechadas
“Por que isso seria um problema?”, indaga Michael Kimmel, para quem a situação, por si só, dificilmente deve ser interpretada como assédio. No entanto, em algumas organizações, entre elas o Sesi, há orientações para que professores não fiquem sozinhos com um único aluno na sala de aula a portas fechadas.

Mandar “beijo” no final de e-mails e mensagens
Não há notícia de que isso tenha acabado em processo, mas, por receio de que a atitude seja interpretada como tentativa de ampliar a intimidade, muitos profissionais têm preferido o “abraço” ou simplesmente o “obrigado”.

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Com reportagem de Françoise Terzian e Leonardo Lellis

Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2018, edição nº 2564

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