É IMPOSSÍVEL exagerar a importância do britânico Geoffrey Chaucer (1342-1400) para a literatura em língua inglesa — ou em qualquer língua do Ocidente. Baste-nos, por falta de espaço, dizer que foi um precursor do romance moderno e o maior ironista na literatura ocidental antes de Jonathan Swift. Ainda assim, ao término de sua obra-prima, os Contos da Cantuária — que traduzi para a Penguin/Companhia das Letras em 2013 —, Chaucer fez aquilo que, segundo um adágio, nenhum artista deveria fazer: pediu desculpas. Para espanto de inúmeros leitores ao longo dos séculos, o que nos espera nas últimas páginas de seus exuberantes Contos não é um posfácio, mas uma esquisitíssima Retratação. Após nos conduzir por um labirinto de histórias aventurosas, picarescas e obscenas, Chaucer implora perdão aos céus — e a nós, leitores futuros — pelo pecado de ter nos divertido tanto: “Se encontrarem nesta obra algo que os desagrade, imputem-no à minha ignorância — não à minha vontade, pois eu certamente teria feito algo melhor, se tivesse o poder e o conhecimento para tanto. Peço humildemente a todos que rezem por mim, para que Cristo tenha piedade e perdoe minhas faltas, especialmente minhas traduções e composições referentes às vaidades humanas, que ora rejeito”.
Se Chaucer escreveu essas palavras a sério, estamos diante de um dos casos mais enfáticos de autocensura pública na literatura. Há quem goste de ver artistas pedindo desculpas; há quem se compraza perante justificações estéticas ou ideológicas, apologias políticas ou morais. Já eu penso que existe algo de ontologicamente constrangedor nesse tipo de autoflagelo — e no prazer perverso, e aparentemente atemporal, que as retratações da arte causam em certas multidões. Perante a obra que ofende, há várias reações adultas possíveis — minha preferida é a crítica. Perante a obra que entedia — e aí se incluem as que se aferram, ainda, à pitoresca doutrina de épater le bourgeois —, voto pela indiferença, esse bálsamo. Quanto ao artista, seja ele genial ou medíocre, o mais prudente é seguir as palavras de Pôncio Pilatos na Vulgata: Quod scripsi, scripsi. “O que escrevi está escrito.”
Lembremos, porém, um fato crucial: Chaucer era um ironista. E, no fim das contas, a ironia (esse tema infinito, do qual já falamos na coluna passada) talvez seja, hoje e sempre, a melhor resposta a todas as formas de censura — oficiais ou diletantes, verticais ou difusas. A censura é avessa à multiplicidade de sentidos; quer que os textos e obras digam claramente a que vieram, para que possa, então, ratificá-los ou condená-los. Parece-me boa ideia, portanto, fazer o oposto do que os censores de todas as estirpes desejam. Em vez de decifrar intenções, cifrá-las ainda mais; em vez de criar sentidos únicos, multiplicá-los e confundi-los até estontear os carcereiros. Isso — prefiro acreditar — é o que fez o mestre Chaucer em sua estranha Retratação.
De minha parte, amigo Chaucer, eu não o perdoo. O que você escreveu está escrito. E é eterno.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2017, edição nº 2554