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Na sala da fúria

Em cidades do mundo inteiro, clientes pagam para entrar em um cômodo e destruir o que veem pela frente. Não é terapia, mas que ajuda a lavar a alma, ajuda

Por Luisa Bustamante Atualizado em 14 set 2017, 23h11 - Publicado em 14 set 2017, 06h00

O cotidiano está de amargar e sua vontade é sair quebrando tudo? Fácil: dirija-se à anger room mais próxima e ponha para fora seus demônios sem nem precisar limpar nada depois. As salas da raiva, em tradução literal, são cômodos montados para ser destruídos à base de taco de beisebol, porretes e até pé de cabra. Já funcionam em uma dezena de países, no Brasil inclusive, com lista de espera nas noites de maior procura. Pode não ser — e não é — o método definitivo de cura de quem tem sérios problemas para controlar a própria fúria. Mas, como forma de aliviar irritações cotidianas, o ato de destroçar pratos, copos, garrafas e aparelhos eletrônicos em geral é uma eficiente válvula de escape. “O simples ato de agendar um horário e se deslocar até o local já obriga a pessoa a segurar o impulso de agredir. Lá dentro, ela libera sua cólera de maneira segura e controlada. É uma forma interessante de canalização de tensões”, avalia o neurologista Alexandre Ghelman, especialista em controle de raiva.

O berço das salas de quebra-quebra são os Estados Unidos, onde elas se espalham por diversos estados. Em Nova York, só consegue entrar no Wrecking Club, um discreto galpão aberto neste ano em Manhattan, quem agendou horário. Ao custo de 120 dólares, o cliente tem direito ao pacote completo (há outros menos variados) de destruição — que inclui uma televisão de tela plana, uma impressora, dois computadores, um telefone fixo, um celular e um balde de louças, e pode ser usufruído por duas pessoas.  Seu fundador, Tom Daly, diz que a quebradeira atrai todo tipo de público, desde casais em busca de um encontro diferente — “As pessoas estão cansadas de programas chatos, como cinema e jantar”, argumenta — até, recentemente, um grupo de senhoras de 80 anos comemorando um aniversário. “A performance daquelas senhorinhas, posso garantir, foi melhor que a de muita gente jovem”, relatou a VEJA. “Nada como dar vazão a um instinto.”

A clássica cena de quebrar um copo ou um vaso ou um porta-retratos em um momento de raiva pode não ser tão repetida na vida real, em que os limites da vida em sociedade refreiam impulsos dessa natureza, mas se encaixa perfeitamente no contexto das reações humanas. A raiva provoca uma reação química no cérebro que ativa a amígdala, região que regula respostas emocionais. Isso resulta em uma liberação de hormônios do stress, o que aumenta a pressão sanguínea, os batimentos cardíacos e o nível de glicose no sangue (essa mesma resposta, por sinal, é a que permite ao ser humano reagir com rapidez a ameaças). Em segundos, a cadeia pode levar a um rompante de fúria. Felizmente, bastam alguns segundos também para controlá-lo. Ou não. O extremo do descontrole foi brilhantemente retratado no filme Um Dia de Fúria, de 1993, em que um engenheiro desempregado e divorciado (Michael Douglas) vai de irritação em irritação em uma manhã difícil até que a cólera acumulada explode em uma sequência de atos de intensa violência. Nesse caso, obviamente, não há anger room que dê jeito na raiva represada.

Mas, em situações muito menos dilacerantes que as do filme, desopilar é bom e até faz bem à saúde. “Reprimir sentimentos aumenta o risco de desenvolver doenças autoimunes e alergias. Quem engole a raiva vira uma panela de pressão e pode desenvolver quadros de euforia, ansiedade e depressão”, explica a psicanalista Ceres Araújo, professora da PUC-SP. Ceres lembra inclusive a técnica do “grito primal”, que consistia em gritar o mais alto possível entre quatro paredes bem grossas como forma de “curar neuroses”. Difundida nos anos 60 e 70 do século passado, ela fez de seu inventor, o psicoterapeuta americano Arthur Janov, um guru entre artistas e milionários como Steve Jobs e John Lennon.

Extremo – Douglas em ‘Um Dia de Fúria’: de irritações à explosão de violência (//Divulgação)

Bem mais modestas em seu propósito, as anger rooms de hoje são procuradas menos por supostos efeitos terapêuticos e mais pela pura e simples diversão. A primeira de que se tem notícia nasceu em 2008, no Texas, quando a publicitária Donna Alexander teve a ideia de recolher na sua garagem objetos deixados nas calçadas (prática comum nos Estados Unidos, o país do “quebrou, compra outro”) e chamar os amigos para estilhaçar tudo, a 5 dólares a sessão. Logo a vizinhança inteira apareceu à sua porta, querendo uma coisinha para arrebentar. Donna transformou o hobby em negócio há seis anos. Uma sessão básica custa 25 dólares, mas por 500 dólares o cliente pode recriar um cômodo inteiro (digamos, a sala do chefe) e pôr tudo abaixo. Ela está avaliando a abertura de franquias. Já tem 2 500 interessados. Mais avançada neste caminho está a rede canadense Rage Room, que conta com sete licenciados, dos 1 000 que a procuraram.

Os donos das salas da fúria dizem que os clientes destroem, em média, sessenta a setenta aparelhos eletrônicos (disparados os que estão na preferência dos furiosos) por semana. Eles se suprem de matéria-prima via doações, com a compra de produtos defeituosos e com incursões frequentes a depósitos de descarte, onde, literalmente, reviram o lixo. “Funciona como uma caça ao tesouro, e nós somos os caçadores”, brinca Daly. Nem só de quebrar laptops vive o cliente com raiva. Durante a disputa presidencial americana do ano passado, Donna vestiu bonecos com o rosto dos adversários Hillary Clinton e Donald Trump para ser estraçalhados a pauladas. E foram mesmo: sua equipe precisou substituir os bonecos cinco vezes (duas Hillarys e três Trumps).

Salas da raiva estão em atividade na Rússia, na Inglaterra, na Austrália, em Singapura, na Argentina e em um bar da Zona Sul de São Paulo, o Break Lab Burger, iniciativa do casal de estudantes Tainah Marques, de 20 anos, e Eduardo Leonel, de 22, que diz ter-­se inspirado na experiência portenha. Na salinha dos fundos do bar (que neste mês está fechada para a colocação de isolamento acústico), pagam-se 19,90 reais para estilhaçar dez garrafas de vidro e 49,90 reais para destruir uma televisão de 29 polegadas. O movimento não para de aumentar, comemoram os donos. Também pudera: “Curamos sua bad em quinze minutos”, prometem os cartazes na parede. Furiosos primais, façam fila.


A repórter botou para quebrar

Daniela Pessoa, de Nova York

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Sem dó nem piedade – Daniela: nada como despedaçar eletrônicos (Gilberto Tadday/)

“Passava das 10 da noite quando me vi em um porão de paredes grafitadas, a meia-luz, rodeada de pés de cabra, tacos de beisebol e marretas. Parecia cenário de filme de terror, mas o galpão localizado no subsolo silencioso de um prédio comercial não muito longe da Times Square, em Nova York, é a sede do The Wrecking Club, um local semissecreto visitado por quem está a fim de quebrar, destruir e espatifar objetos. O simpático dono, Tom Daly, levou-me a uma pequena sala onde estavam dispostas sobre uma mesa de metal (amassada) as coisas que eu viria a destruir: uma impressora, um scanner, um monitor de computador, um telefone fixo, um balde de pratos e um celular (preço do pacote: 70 dólares, ou 220 reais). Daly aprovou meu vestuário (calça, casaco de manga comprida e sapatos fechados, como manda a regra da casa) e providenciou o kit peão de obra: óculos de segurança, luvas e capacete. Assinei um documento em que assumia, entre outras cláusulas, o risco de morrer em decorrência de acidente durante a atividade. Medo… Daly recomendou que eu plugasse o celular na caixa de som e sugeriu uma música — para minha surpresa, o funk Baile de Favela, do MC João. ‘Não sei o que a letra diz, mas acho a batida assustadora’, declarou ele. A letra também, Daly. Ao som de ‘Ela veio quente, e hoje eu estou fervendo’, avancei timidamente com o taco sobre o scanner. Não arranquei nem uma lasca. Mas o batidão acelerou, eu me empolguei e as cacetadas ficaram mais potentes e certeiras. O melhor de tudo, porém, foi arremessar pratos contra as paredes. Garanto: ver e ouvir a porcelana se estilhaçando é muito terapêutico. Meia hora depois, a sessão chegou ao fim e eu percebi que estava exausta. Nunca suei tanto na vida, sem exagero, nem mesmo na academia. Tinha o corpo em bicas — e a alma lavada.”

Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548

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