Monstro reprimido
Em 'Thelma', o curioso candidato norueguês a uma vaga no Oscar, os desejos que uma menina não sabe reconhecer viram uma criatura que devora e devasta
Na abertura de Thelma (Noruega/Dinamarca/Suécia/França, 2017), já em cartaz no país, um caçador põe um cervo sob sua mira, num bosque — e então cogita uma atitude em relação à sua filha que abala o espectador: por que uma criança desperta ideias assim no próprio pai? A senha para muito do mistério que cerca a personagem-título está no momento que antecedeu a esse, no qual, atravessando um lago congelado, o pai e a pequena Thelma observam os peixes nadando, presos sob a superfície cristalina. A menina vê a graciosidade da cena; no homem, o que se flagra é um horrível mal-estar.
Anos depois, esse mal-estar terá se convertido na circunspecção com que Trond (Henrik Rafaelsen), o pai, trata a jovem Thelma (Eili Harboe), que pela primeira vez está longe de casa, na universidade. Serena, tímida e educada, a garota é também uma cristã devota, como os pais. Não bebe, não vai a baladas, não “fica” com os colegas e sente-se terrivelmente solitária. Um dia, uma outra aluna senta-se ao lado dela — e de repente pássaros se chocam contras as janelas e caem mortos, e Thelma começa a ter convulsões. Seria tentador classificar como terror o filme de Joachim Trier, candidato da Noruega a uma vaga no Oscar de produção estrangeira. Mas, apesar da abertura chocante e das sugestões sobrenaturais que se intrometem nos enquadramentos suntuosos do diretor, o horror de fato, aqui, está em não saber quem se é realmente — e em viver à espreita das coisas perturbadoras que talvez estejam aprisionadas no próprio íntimo.
As reações que Anja (Kaya Wilkins) deflagrou em Thelma são confundidas com epilepsia, tal a força com que o desejo se apresenta a ela pela primeira vez. De médico em médico à procura de um diagnóstico, Thelma encontra um caminho insuspeito rumo ao passado que sua memória suprimiu. Trier tem uma linha de chegada em vista: a repressão das pulsões humanas não cria a ordem, como quer a moral religiosa, mas antes as transforma numa criatura que devora e devasta. Aceitas, elas operam um milagre — o de devolver o mundo à paz.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559