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Mais do que cuecas

Renúncia do vice-presidente uruguaio, acusado de fazer gastança com cartão corporativo, é uma boa lição para o Brasil: partidos não devem proteger corruptos

Por Luiza Queiroz
Atualizado em 15 set 2017, 06h00 - Publicado em 15 set 2017, 06h00

Um escândalo de corrupção derrubou o vice-presidente do Uruguai. Raúl Sendic, no cargo desde 2015, renunciou no sábado 9 depois de ter sido revelado que ele gastou cerca de 56 000 dólares com cartões corporativos da empresa estatal de petróleo, a Ancap, entre 2005 e 2009. Sem pegar recibo de nada, ele se esbaldou em compras em lojas de roupas como H&M, Adidas, Tommy Hilfiger e Macy’s em viagens pelo exterior. Também fez a festa em uma unidade da Apple, em joalherias, livrarias, supermercados e lojas de suvenires.

Todas as autoridades uruguaias de renome o condenaram pelo comportamento, embora o ex-presidente uruguaio José Mujica tenha relativizado o desvio. “Enquanto no Brasil aparecem malas de dinheiro e na Argentina umas monjas escondem sacolas, nós aqui estamos discutindo cuecas. Vamos dar a devida dimensão às coisas, por favor”, disse Mujica.

De fato, o valor gasto por Sendic nos cartões é ínfimo quando comparado aos 51 milhões de reais encontrados no apartamento-cofre do ex-ministro Geddel Vieira Lima (veja reportagem na pág. 60). Também é bem pouco diante do caso das três freiras que foram flagradas no ano passado escondendo 165 sacolas com euros, dólares e joias (num total de 9 milhões de dólares) do corrupto José López, secretário de Obras nos governos de Néstor e Cristina Kirchner, no mosteiro Irmãs Orantes e Penitentes de Nossa Senhora de Fátima, perto de Buenos Aires. Mas reduzir a gravidade do episódio que envolve Sendic, como fez Mujica, serve apenas de biombo político para esconder a questão moral.

O Uruguai é o país com a menor percepção de corrupção da América Latina, segundo a ONG Transparência Internacional. No ranking mundial da honestidade, está em 21º lugar, muito à frente do Brasil, na 79ª posição. A boa pontuação do Uruguai no ranking da Transparência Internacional tem relação direta com a rejeição dos uruguaios aos desvios cometidos no setor público. “Nossos cidadãos exigem dos políticos um comportamento de acordo com os valores éticos predominantes na nossa sociedade”, diz Ricardo Gil, presidente da Junta de Transparência e Ética Pública (Jutep), que está ajudando o Poder Judicial do Uruguai na investigação sobre o caso. A postura dos cidadãos é refletida em seus partidos políticos.

Nova vice – A senadora Lucia Topolansky, mulher de Mujica: ascensão ao posto (Pablo Porciuncula/AFP)

Depois que o semanário liberal Búsqueda divulgou os gastos corporativos de Sendic, o político tentou virar a mesa apelando para o Tribunal de Conduta da Frente Ampla, a coalizão de partidos pela qual foi eleito na chapa encabeçada por Tabaré Vázquez. “Sendic acreditava realmente que era inocente e que seria poupado”, diz o cientista político Daniel Chasquetti, da Universidade da República, em Montevidéu. O órgão partidário concluiu que o vice-presidente tinha mesmo cometido faltas éticas graves no manejo de verbas públicas. Menos de uma semana depois, Sendic entregou sua renúncia. “No Brasil, nunca houve uma responsabilização intrapartidária por parte de nenhuma agremiação ao longo da Lava-Jato. Os partidos brasileiros têm uma postura corporativista e defendem seus membros até as últimas consequências. No Uruguai, isso não acontece”, afirma Thomaz Favaro, diretor associado para o Cone Sul da consultoria de risco político Control Risks, em São Paulo. Exemplar no caso uruguaio também foi a postura do presidente Tabaré Vázquez. Não protegeu Sendic e apoiou a decisão do tribunal partidário.

Filho de um guerrilheiro do grupo tupamaro (movimento armado de esquerda durante a ditadura militar), Raúl Sendic formou-se em medicina na Universidade de Havana, em Cuba. Mujica, ele mesmo um ex-­tupamaro, disse que considera Sendic o filho que nunca teve. Em 2005, Sendic chegou à vice-presidência da petroleira estatal Ancap e passou a presidi-­la em 2008. Após um período de ausência, assumiu novamente o posto em 2010 e ficou nele até 2013, quando pediu demissão para dedicar-­se à campanha presidencial do ano seguinte. Em 2015, Sendic assumiu a Vice-Presidência do país. No mesmo ano, o Senado criou uma comissão para investigar denúncias contra a sua administração na Ancap. Entre as suspeitas estavam superfaturamentos, concessões sem licitação prévia e uma festa organizada pela empresa que custou 370 000 dólares. No total, o rombo causado na petroleira foi de 600 milhões de dólares. Além dos escândalos da Ancap, Sendic foi acusado em 2016 de turbinar indevidamente seu currículo acadêmico. Era falso seu título de licenciatura em genética humana. Primeiro, Sendic negou a acusação. Depois, admitiu que de fato não tinha feito o curso e se prontificou a fazê-lo em alguma universidade, como se isso apagasse a mentira.

Pela lei uruguaia, a vacância no posto de vice-presidente deve ser preenchida pelo senador mais votado — atualmente, ninguém menos que o próprio Mujica. O ex-presidente, no entanto, não pode assumir pois no Uruguai não é permitido ocupar o cargo em dois mandatos consecutivos, e ele não estaria apto, portanto, a substituir Tabaré Vázquez quando necessário. A Vice-Presidência do país acabou sendo ocupada pela segunda parlamentar mais votada do Senado — atualmente, ninguém menos que a mulher de Mujica, Lucia Topolansky, de 72 anos, também ela ex-tupamaro. De certa forma, ficou tudo em família, mas com uma diferença crucial: Sendic dificilmente conseguirá retomar sua carreira política. Os uruguaios não perdoam.

Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548

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