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Limites para a arte?

Na esteira da controvérsia sobre a exposição Queermuseu, a pergunta acima foi tema de redação da Fuvest. A resposta é uma só: limitar é censurar

Por Gaudêncio Fidelis*
Atualizado em 31 jan 2018, 15h44 - Publicado em 12 jan 2018, 06h00

Redigir este texto foi como fazer a prova de redação do vestibular da Fuvest deste ano. O tema proposto a mais de 21 000 vestibulandos — “Devem existir limites para a arte?” — mostra-se desafiador e atual, uma vez que foi apenas recentemente apresentado a grandes parcelas da sociedade brasileira. Seu mérito consiste justamente em testar o equilíbrio argumentativo diante da análise apaixonada de quem escreve, já que a paixão oferece, por natureza, um componente necessário para que se dê qualquer contribuição significativa ao conhecimento. Imagino que cada um daqueles que participaram da prova o fez com o desejo de realizar, com excelência, sua contribuição.

Entre os casos postos em discussão na prova estava Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, exposição concebida para ser uma plataforma de debate e diálogo sobre gênero, diferença e diversidade — temas que acreditamos de interesse para a vida contemporânea —, assim como sobre um vasto conjunto de questões artísticas. Mesmo encerrada antecipadamente pelo banco Santander, em uma atitude de censura artística das mais graves, ela cumpriu sua missão. No centro da grande discussão pública que a mostra despertou, encontram-se a liberdade de expressão e de escolha, o acesso ao conhecimento, a censura, a verdade dos fatos e as notícias falsas, a difamação e seu impacto social, e inclusive a liberdade de imprensa, indispensável à democracia. Cabe lembrar antes de tudo que só não estão protegidas pela liberdade constitucional as manifestações de caráter racista e de ódio. De outra forma, a liberdade de expressão, na qual tais limites estariam implicados, é assegurada pelo Estado democrático. A Constituição de 1988 proíbe categoricamente qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística.

Mas é preciso assinalar que não é de fato um problema de ordem legal que está colocado aqui, e sim um debate sobre mérito, já que no cerne dessa pergunta residiriam dúvidas sobre o que é a arte, sobre o que ela significa e como imagens agem sobre os indivíduos. Diante de tais dúvidas, está uma questão que parece nunca ser resolvida: como tais limites, quando atribuídos à arte, transformam-se em uma característica subjetiva, que se dissemina pelo território da vontade de cada um, subjugada ao próprio desejo individual? A arte, no entanto, é um campo do conhecimento gerado pela expressão, como uma forma de manifestação da criatividade. Portanto, a pergunta sobre seus possíveis limites deve ser respondida não sob a perspectiva de como, de que forma e quando a arte deve existir, pois a prerrogativa da existência já lhe está assegurada pela Constituição. Não é à arte que se poderiam impor limites, mas à expressão, e, nesse caso, tais limites se transformariam em censura. Mesmo assim, a pergunta sobre os tais limites me foi feita diversas vezes depois do fechamento da exposição Queermuseu.

Para chegarmos a uma resposta, precisamos de antemão afirmar que a arte, seja através de sua realidade material ou de seu poder simbólico, não produz objetos criminosos. Caso contrário, não se trataria de arte. As pinturas de Bia Leite (2013) da série “criança viada”, incluídas na Queermuseu, constituem uma denúncia sobre o bullying praticado contra crianças e pré-adolescentes LGBTQ. Nenhuma delas faz apologia da pedofilia, como foi proclamado. Cena de Interior II (1994), de Adriana Varejão, igualmente presente na exposição, retrata as mazelas e os costumes exploratórios do período da colonização brasileira. Não se trata, como se disse, de apologia da zoofilia — nem poderia ser, pois é uma denúncia e uma constatação. Bandeira Branca (2010), de Nuno Ramos, citada no tema da redação da Fuvest, é uma surpreendente manifestação poética da existência da quase milagrosa aerodinâmica dos pássaros em contraste com nossa incapacidade, como seres humanos, de voar autonomamente.

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Podemos não gostar dessas obras, e ainda assim nosso gosto pode não ser imutável. Essa questão, pouco explorada e ainda menos discutida amplamente, recaiu sobre o imaginário popular como uma equivocada percepção de que a arte de alguma forma poderia pertencer ao universo do mal. Tal discussão traz para o campo epistemológico a equação “boa ou má arte”, sob a perspectiva da qualidade estética e moral, um debate improdutivo quando incide sobre a liberdade de expressão. Assim, exposições, especialmente aquelas realizadas em museus (Queermuseu, não por acaso, foi concebida como um museu provisório e metafórico), são justamente o lugar por excelência das escolhas que cada um de nós pode realizar sobre o que acreditamos tenha significado artístico. Para os especialistas ficaria a tarefa de decidir o que acreditam deva ou não ser elevado ao patamar de relevância canônica.

Nossa liberdade reside em termos a mais ampla possibilidade de escolha, sabendo de antemão que estamos elegendo aquilo que desejamos, de acordo com nossas crenças, história de vida, sensibilidade, generosidade e disposição, na sua presença ou na falta delas. Citada como referência para o tema da redação da Fuvest, a obra Self (1991), de Marc Quinn, autorretrato do artista feito com seu sangue, testa os limites da vida. Sua interpretação condiciona-se à nossa fé sobre se a vida é contingencial ou eterna. No outro extremo desse espectro podemos citar a pintura A Origem do Mundo (1866), de Gustave Courbet, que causou escândalo na época. Mas para não admiti-la como uma obra de arte teríamos de negar que a origem da vida está ligada à sexualidade.

A tolerância é indispensável em qualquer democracia e está no cerne da convivência em sociedade. Ao olharmos para objetos artísticos, projetamos neles nossos preconceitos, crenças e desejos de acordo com expectativas e experiências de vida. Não é diferente de nosso comportamento em relação ao outro. Nesse processo de confronto com a forma artística, há também um caráter profundamente pedagógico, pois a liberdade de expressão implica aprender a conviver com a diferença e a diversidade. Assim, impor limites à arte seria restringir a produção de conhecimento, porque a arte não é outra coisa. Ela revê muitas das concepções do passado e aponta para outras tantas visões de futuro.

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O renascentista Filippo Brunelleschi (1377-1446), cujas obras, considera-se, reforçaram a realidade espiritual cristã, inventou a perspectiva linear. Leonardo da Vinci (1452-1519), outro gênio da Renascença, foi um dos artistas que mais contribuíram para os avanços da medicina e da tecnologia moderna. O cubismo de Pablo Picasso (1881-1973)e Georges Braque (1882-1963) projetou o campo da visão para o futuro — Les Demoiselles d’Avignon (1907), do primeiro, que igualmente chocou seus contemporâneos ao retratar mulheres de bordel, mostrou-nos que o olhar é multidirecional e translinear.

Impedir o acesso ao conhecimento também é uma forma de censura. O debate que é alavancado pelo tema de redação da Fuvest está mediado por dois aspectos, aquele da lei e o do impacto das imagens sobre os indivíduos, sejam eles crianças, adolescentes ou adultos. Ficou provado que as leis foram cumpridas em todos os casos que fomentaram essa falsa “polêmica” sobre a produção artística. O que cabe assinalar, então, é a necessidade de preparo de cada indivíduo para enfrentar o universo das imagens de toda ordem que existem no mundo contemporâneo. Esse desafio somente poderá ser enfrentado pela sólida formação e estabilidade psicológica que são propiciadas a nós, como indivíduos, ao longo de nossa vida, e das quais a educação é o fator mais determinante.

* Doutor em história da arte. Foi curador da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira

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Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2018, edição nº 2565

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