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Instantâneo para a posteridade

Uma fotografia recém-descoberta de Machado de Assis resgata um dado atenuado deliberadamente em sua iconografia: a pele negra

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualizado em 6 jul 2018, 06h00 - Publicado em 6 jul 2018, 06h00

Iconografia é uma palavra ambiciosa. Afinal, em sua origem, ela prometia a consagração de santos e mártires. Nos tempos modernos, a fixação de reis e de rainhas deu ao gênero do retrato a nobreza que, embora longe da beatificação, era assegurada pelo caráter extraordinário das personagens representadas. No século XVIII, Joshua Reynolds principiou a pintar figuras nada beatas e sem nenhum título de nobreza: eram pessoas que haviam chamado a atenção do público por sua carreira ou por gestos excepcionais. Em 2005, uma relevante exposição na galeria Tate Britain, em Londres, The Creation of Celebrity, propôs que aí se achava a gênese da noção de celebridade. Noção tornada onipresente pela invenção, em 1839, por Louis Daguerre, do primeiro processo de fixação da imagem numa placa de cobre: eis o advento da fotografia! E com ela a difusão, numa escala até então impensável, de retratos de pessoas de todos os estratos sociais. O ano de 1839, portanto, é chave na história da iconografia. De igual modo, trata-se de momento ímpar na história da cultura brasileira, pois nesse mesmo ano nasceu Machado de Assis.

A recente descoberta, por parte do notável pesquisador independente Felipe Pereira Rissato, do que parece ser a última fotografia em vida do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas tanto se insere nesse contexto internacional quanto esclarece uma particularidade brasileira. O imperador Pedro II foi apaixonado pela fotografia. Em 1840, aos 14 anos, adquiriu o primeiro daguerreótipo de que se tem notícia no Brasil. Ele foi retratado pelos mais importantes fotógrafos em atividade na capital do Império, como Marc Ferrez e Joaquim Insley Pacheco. Machado também demonstrou grande interesse pela novidade, mencionada em crônicas, contos e romances. De igual modo, e apesar da imagem de homem reservado e mesmo tímido, deixou-se fotografar com frequência.

Em 2008, Hélio de Seixas Guimarães e Vladimir Sachetta localizaram 24 registros fotográficos, reunidos em A Olhos Vistos — Uma Iconografia de Machado de Assis. Em 2016, Felipe Pereira Rissato publicou “Iconografia fotográfica de Machado de Assis”, artigo de grande relevância, na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras (disponível gratuitamente para consulta na página da Academia), coligindo nada menos do que 38 fotografias. Agora, o número pulou para 39!

RETRATO “NOVO”-  A foto descoberta: de corpo inteiro pouco antes de morrer (Caras y Caretas/Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España/.)

Aos 25 anos, já havia fotografias do jovem Machado tiradas por Joaquim Insley Pacheco. Em 1884, Marc Ferrez fixou um dos mais célebres retratos do autor: paremos um pouco para observá-lo. Esta é a última fotografia na qual se percebe certo desalinho: a barba e o bigode não estão exatamente aparados; os cabelos parecem ligeiramente revoltos; o casaco é um pouco maior que o corpo. Por fim, o rosto ainda é “evidentemente mulato” — como Hélio de Seixas Guimarães descreveu as imagens do jovem Machado. Ainda porque a partir dessa data a iconografia machadiana se transforma num retrato involuntário da ideologia do branqueamento da população brasileira. Ideologia particularmente visível na tela de Modesto Brocos, A Redenção de Cam, de 1895, na qual a avó negra e a mãe mulata celebram o nascimento do filho de um homem pobre, porém branco: o menino também é branco; daí a “redenção”.

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Um mês após a morte do escritor, ocorrida em 29 de setembro de 1908, o crítico José Veríssimo, grande amigo de Machado de Assis, fez um elogio no Jornal do Commercio, incluindo a sentença: “Mulato, foi de fato um grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida”. Outro amigo dileto, o embaixador Joaquim Nabuco reagiu com rispidez em carta nada diplomática: “Eu não teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese (…). O Machado para mim era um branco, e (…) quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego”. Sem comentários.

Antes mesmo da reação de Nabuco, as imagens de Machado se encarregaram de levar adiante o projeto de branqueamento. Destaca-se aqui o quadro de Henrique Bernardelli, encomendado pela ABL e exposto pela primeira vez em 1905. Nele, o autor bem poderia ilustrar a caracterização surpreendente de Alfredo Pujol: “Era um Luciano de Samósata, nascido e criado em pleno século XIX, no Morro do Livramento”. Eis a importância da fotografia resgatada por Rissato. Aliás, vale a pena sublinhar a dedicação e o faro do pesquisador paraense, bancário na Caixa Econômica Federal, que tem dado uma contribuição de peso aos estudos de Euclides da Cunha e Machado. Estampado na revista argentina Caras y Caretas, no ano de sua morte, o Machado de corpo inteiro é um homem evidentemente negro. Trajado com perfeição, a barba e o bigode irretocáveis, apresentado como “presidente de la Academia de la Lengua Brasileña”. Ainda assim, ou por isso mesmo, esse instantâneo afro-brasileiro rompe com o modelo ático legado à posteridade. No improviso da tomada da foto se revela o racismo que hoje em dia felizmente se tornou inaceitável.

 

Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590

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