Herói clássico
Tom Cruise protagoniza façanhas em 'Missão: Impossível — Efeito Fallout'. A mais impressionante delas: manter-se como o paradigma dos astros de ação aos 56
Presumivelmente, há de chegar o dia em que Tom Cruise, de 56 anos completados em 3 de julho, examinará os planos para uma das sequências de um novo Missão: Impossível e constatará: o físico já não aguenta tudo isso. Aí, então, a série terá de se encerrar, porque é pela extravagância das cenas de ação que ela se define — e, sobretudo, pelo fato, sempre muito alardeado, de que o próprio ator é quem pilota, salta, escala ou se pendura, protagonizando façanhas que, mesmo no ambiente controlado de um set, só dublês muito experimentados teriam habilidade (e coragem) para desempenhar. Sua decisão de deslizar pessoalmente pelo exterior de vidro da torre Burj Khalifa (quase 1 quilômetro de altura), em Dubai, para Protocolo Fantasma, em 2011, implicou demitir a companhia de seguros que garantia a produção e que, compreensivelmente, queria impedir a doidice. Uma seguradora mais tolerante — e mais cara — foi escolhida para Nação Secreta, de 2015, em que Cruise se agarrava, pelo lado de fora, à fuselagem de um avião em pleno voo. Para Missão: Impossível — Efeito Fallout (Mission: Impossible — Fallout, Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, o ator fez mais de 100 saltos de paraquedas de uma altitude de 6 000 metros, posicionando-se sempre, impecavelmente, a 1 metro de distância do cameraman que o acompanhava na queda livre a 320 quilômetros por hora.
Cruise aprendeu também a manejar um helicóptero com destreza de piloto militar, para esgueirar-se com o equipamento por entre desfiladeiros em uma sequência tão fantástica (na acepção da palavra) e tão bem executada que, na comparação, faz parecer fichinhas outras cenas espetaculares deste sexto episódio da série — como aquela em que o ator corre de moto no contrafluxo do trânsito parisiense, ou ainda outra em que se segura pelas unhas à parede de um penhasco. Mais até do que nessas peripécias, porém, ele impressiona em uma briga estupenda num banheiro masculino, o qual se encarrega de destruir junto com Henry Cavill (35 anos e porte de geladeira side-by-side) e o chinês Liang Yang, um lutador impressionante. Isso, sim, é castigar o corpo. Cruise terminou um dos stunts de Efeito Fallout com um tornozelo quebrado. Mas, findas as oito semanas de recuperação, voltou ao trabalho, lampeiro e disposto como sempre. Ou seja: há, sim, de chegar o dia em que não será mais viável Cruise entregar-se a essas loucuras. Mas, no estado de conservação em que ele segue, digamos assim, não é improvável que possa avançar com a série por toda a próxima década. Fôlego e dedicação não lhe faltam, e a parceria com o diretor e roteirista Christopher McQuarrie tem se mostrado extraordinariamente frutífera: quem sabe fazer faz de verdade, é o credo da dupla — e o que destaca Missão entre tantas produções nas quais, por tudo ser digital, nada é impossível.
A interrupção causada pela fratura no tornozelo adicionou um extra de, estima-se, 70 milhões de dólares aos 180 milhões do orçamento de produção de Efeito Fallout (quantia que deve ser coberta pela apólice de seguros, que ironia). Mesmo sem esse tipo de contratempo, Missão: Impossível é uma série difícil de fazer, cara, trabalhosa e perigosa. Sua margem de lucro, além disso, é apertada: nenhum dos filmes chegou perto da marca de 1 bilhão de dólares de renda global. Com a mesma despesa — e muito menos risco —, um Star Wars ou um Transformers (para não falar nos filmes da Marvel) tem faturamento muito superior. Mas Missão: Impossível divide com 007 o título de marca de ação campeã em prestígio, em inovação, em audácia e no prazer que é capaz de proporcionar aos espectadores já saídos da adolescência (a real ou a figurativa). Mais relevante: é o único caso ainda existente em que o nome do astro é um chamariz tão forte quanto a marca em si.
Em Efeito Fallout, o agente Ethan Hunt (Cruise) mais uma vez enfrenta a sanha da CIA em aniquilar a Força de Missões Impossíveis: com suas máscaras falsas, seus simuladores de voz e suas operações sutis e mirabolantes, a IMF (na sigla em inglês) é um número de circo e não uma ferramenta eficaz, diz Erica Sloan (Angela Bassett), a diretora da CIA. Erica, que é um bloco de gelo, está fervendo de raiva: numa operação desastrada, Hunt preferiu salvar a vida do colega Luther (Ving Rhames) a recuperar três esferas de plutônio colocadas no mercado negro. O destino quase certo do material nuclear é John Lark, um dos apóstolos do terrorista Solomon Lane (Sean Harris, extraindo ouro de um papel convencional). Hunt apreendeu Lane no filme anterior, Nação Rebelde, mas ele vem sendo levado de país em país para responder por seus crimes, o que cria momentos críticos de vulnerabilidade. John Lark, além disso, parece ser um desses discípulos determinados a superar o mestre em fanatismo — com a agravante de que ninguém sabe qual o seu nome, rosto, nacionalidade ou ramo de atividade. A contragosto, Erica deixa que Ethan Hunt tente identificar Lark para remediar o erro que cometeu, o que o leva a fabulosas perseguições em Paris e Londres (além de locações na Noruega e na Nova Zelândia, estas fazendo o papel da região asiática da Caxemira) e a um duelo com uma loira que é uma coisa de louco, a facilitadora internacional Viúva Branca (Vanessa Kirby, a princesa Margaret da série The Crown). A agente inglesa Ilsa Faust (Rebecca Ferguson), antes aliada de Hunt, agora se põe em seu caminho, no qual já há um obstáculo e tanto: o agente Walker (Cavill), que a diretora da CIA colocou em sua cola. A IMF que fique com o bisturi que é Hunt, diz Erica — ela mesma prefere uma boa e pesada marreta, como Walker.
Fã de Alfred Hitchcock, como já demonstrara no elegantíssimo Nação Rebelde, o diretor Christopher McQuarrie põe assim em prática, com excelentes resultados, vários dos truques preferidos do mestre do suspense. Por exemplo, o vilão que já se sabe estar no meio dos personagens e que, a rigor, pode ser qualquer um deles; o “McGuffin”, como Hitchcock denominava o elemento da trama que parece complicado (neste caso, o paradeiro das esferas de plutônio) mas que ninguém deve se preocupar em entender, porque sua única função é gerar movimento; e o recurso sempre excitante de pôr a plateia na beirada da cadeira, à espera da detonação de uma bomba.
McQuarrie, porém, endereça a mais divertida de suas brincadeiras — a escalação de Cavill — ao cenário atual do cinema, no qual uma peça clássica como Missão: Impossível tem de se impor. O inglês Henry Cavill não apenas tem alguns palmos de altura e de largura de vantagem sobre Tom Cruise, como é muito notoriamente o atual Super-Homem dos filmes da DC. Cavill está ótimo no papel do truculento porém imperturbável agente Walker (além de lindo de morrer, com um bigode farto e uma barba rala), e se presta com gosto à blague do diretor. É maior, bem mais jovem e mais forte que o titular do elenco, está em plena curva ascendente e faz parte da nova elite cinematográfica, a dos super-heróis vindos dos quadrinhos. No papel de Ethan Hunt, porém, Tom Cruise alcança um feito ainda mais espetacular por ser não super-heroico, mas tão somente sobre-humano: pode não ser capaz de fazer o tempo voltar, como o Super-Homem — mas consegue fazê-lo parar e, já no rumo dos 60 anos, manter-se como o mais consumado de todos os astros de ação. Quem sabe fazer, enfim, faz de verdade.
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593