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Férias à la carte

Na nova sociedade, pós-industrial, estarão cada vez mais valorizadas as necessidades subjetivas e particulares dos viajantes, bem formados e globalizados

Por Domenico de Masi*
Atualizado em 7 set 2018, 07h00 - Publicado em 7 set 2018, 07h00

Nossos bisavós viviam, em média, 300 000 horas e trabalhavam 120 000; nós vivemos, em média, 700 000 horas e trabalhamos 80 000. Tudo leva a crer que nossos netos viverão ainda mais, trabalharão ainda menos e dedicarão um tempo bem maior ao ócio ativo, às viagens, ao prazer estético, ao enriquecimento cultural. Além disso, ao menos 1 bilhão de pessoas desfrutam hoje quarenta dias de férias, e muitas empresas introduziram a semana de trabalho de quatro dias. Perfila-­se, assim, uma sociedade do tempo livre, centrada na cultura, no turismo e na distração, que se tornam, por sua vez, oportunidades legítimas de empreendimento econômico.

Nos dois últimos séculos, prevaleceu o turismo de massa, correspondente às férias organizadas como consumo indistinto e repetitivo, segmentado com base nos diversos níveis de status, nas diversas cadeias de hotéis, nos diversos pacotes turísticos, no número diverso de estrelas que exibiam os estabelecimentos. No nosso século, um modelo social totalmente novo está se afirmando, centrado na produção de bens imateriais: informações, serviços, símbolos, valores, estética. Nessa nova sociedade, pós-industrial, o turismo está mais ligado a necessidades subjetivas e personalizadas de viajantes cultos e globalizados.

Trata-se de um turismo que aprecia a aprendizagem tanto quanto o repouso, a qualidade de vida tanto quanto a sua duração, o narcisismo do desempenho psicofísico (wellness) tanto quanto a “reparação” do corpo (fitness), a experiência direta tanto quanto a realizada por meio dos livros, das mídias e da internet. É um turismo no qual abundam os solteiros, os idosos e as mulheres; no qual o cuidado do corpo vai de par com o da alma; no qual estudo, trabalho e jogo se integram no ócio criativo; no qual prevalecem as ideias do “turismo sustentável”, a apreciação da diversidade, a busca de autenticidade, o respeito pela história, pela tradição, pelos lugares, pela cultura.

Um turismo pós-industrial que dura o ano todo e no qual uma oferta multifuncional deve interceptar uma demanda multimotivada, que se identifica cada vez mais com o visitante do mundo interconectado, com os viajantes frequentes, com idosos dotados de tempo livre dessincronizado, com jovens globetrotters intelectualizados, com solteiros, com homossexuais, com foodtrotters em busca de autenticidade, com homens e mulheres de negócios, com os novos turistas de massa sensíveis ao ambiente e à cultura. É preciso integrar o marketing de produto ao marketing territorial para responder à demanda de liberdade individual, de personalização da hospedagem, de cosmopolitismo, de respeito à diversidade.

Tudo isso se traduziu em uma rápida e profunda transformação do sistema turístico, trazida, especialmente, pelo aumento do nível de escolarização e do progresso tecnológico.

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Nesse fenômeno geral existe uma forte segmentação de turistas em termos de poder de compra, e a parte mais rica coincide, na maioria das vezes, com a parte mais culta e mais atenta às escolhas das próprias metas. Eles são 10% do bilhão de cidadãos que dispõem de quarenta dias de férias, desfrutam de uma renda anual superior a 150 000 dólares e podem gastar, durante as viagens, pelo menos 500 dólares por dia.

A estes, podem-se juntar ao menos 10 milhões de aposentados abastados e 10 milhões de pessoas menos ricas, mas amantes da cultura, dispostas a sacrificar outros consumos em nome dos consumos elitistas. Chega-se, assim, a uma elite de 120 milhões de turistas “conscientes”, para quem férias e viagens constituem ocasião para celebrar o casamento entre distração e cultura. Esses turistas de elite querem um pacote integrado, com uma bela praia de manhã, relaxamento à tarde, espetáculos refinados à noite, locais fascinantes, oportunidades raras, cozinha genuína, base cômoda, hospedagem cordial porém não invasiva, respeito à privacidade sem, no entanto, a angústia da solidão. Para que um destino consiga conquistar esse segmento, é preciso que ele tenha a simultânea disponibilidade de recursos climáticos, naturais, históricos, artísticos, gastronômicos, culturais e organizativos.

Ao lado desses 10% de turistas de elite, há a massa de viajantes “desviados”, que tendem a gastar o menos possível; criam desordem, barulho, poluição. Trata-se, na maioria das vezes, de um turismo que “morde e foge”, que usa e joga fora. É vulnerável às mega-atrações efêmeras; à comunicação ingênua e espertalhona; ao gigantismo vistoso; à aglomeração; ao fast-food; ao mundo televisivo e ao cinematográfico. Enquanto o turismo de elite é comparável à floricultura, o outro é como a agricultura extensiva: requer grande atenção às correntes internacionais, ao câmbio monetário, ao sistema de transportes coletivos, à rede de operadores de turismo, ao calendário dos grandes eventos esportivos, lúdicos e religiosos. Requer grandes aparatos de recepção, serviços rápidos e bom mercado.

No meio do caminho está o turismo familiar, em que o viajante busca uma relação discreta entre preço e qualidade de serviço. Ele está disposto a gastar as próprias economias para recuperar as forças depois de um período de trabalho, feliz por fruir as férias como oportunidade para aproveitar a presença concomitante dos vários membros da família.

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Essas três tipologias são aqui extremadas intencionalmente para que se frisem as suas diferenças, que, na maior parte dos casos, não são assim tão claras. A falta de uma estratégia de mercado explícita induz muitos operadores a tentar a atração simultânea de todo perfil de turista, juntando pedaços de atrações incompatíveis entre si e, assim, acabando por desencorajar inteiramente a clientela potencial. De todo modo, em cada um dos três tipos de turismo é necessária a capacidade de subtrair clientes a uma concorrência internacional ­cada vez mais aguerrida.

* Domenico De Masi, sociólogo italiano, é autor de O Ócio Criativo (Sextante), entre outras obras

 

Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2018, edição nº 2599

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