“Fala com a Márcia”
Crivella é flagrado prometendo facilidades a evangélicos e vira alvo de pedidos de impeachment. Livrou-se deles, mas saiu ainda mais fraco
Curvado sob um índice de reprovação de 58%, o pior em um quarto de século, e com um secretariado de alta rotatividade (dos doze empossados em janeiro de 2017, só dois permanecem), o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anda comendo o pão que o diabo amassou. Nos últimos dias, o cardápio ficou ainda mais indigesto: Crivella virou alvo de dois pedidos de impeachment na Câmara Municipal — ambos recusados — e de uma solicitação de investigação por improbidade, recebida pelo Ministério Público estadual. Nenhuma das iniciativas vai afastá-lo do cargo agora, mas elas escancaram a fragilidade do seu governo.
O escândalo que motivou as ações contra Crivella deu-se na quarta-feira 4, em um salão do Palácio da Cidade, sede do governo municipal do Rio. Lá, em um encontro que não constava da agenda, o prefeito, bispo licenciado da Igreja Universal, prometeu a 250 pastores evangélicos facilitar o atendimento de seus fiéis na rede pública de saúde e “azeitar” o andamento de isenções tributárias para as igrejas que ainda não gozam o benefício — a gravação do encontro foi divulgada pelo jornal O Globo. Cinco dias depois, o vereador Átila Nunes (MDB) protocolou o primeiro pedido de impeachment na Câmara, seguido por outro, do PSOL.
Ao receber líderes evangélicos na prefeitura e lhes prometer vantagens inacessíveis aos demais cidadãos, explica Manoel Peixinho, professor de direito administrativo da PUC-Rio, Crivella cometeu duas infrações: usou a máquina pública para oferecer benefícios a um grupo (nesse caso, o seu) e feriu a laicidade do Estado, uma vez que se trata de grupo religioso. Aos colegas de fé, disse: “Vamos aproveitar esse tempo que nós estamos na prefeitura para arrumar nossas igrejas”. A acusação apresentada foi que Crivella agiu “de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo”, delito passível de impeachment. O Ministério Público apura se ele incorreu em crime de improbidade administrativa.
Na terça-feira 10, a oposição conseguiu reunir dezessete assinaturas para interromper o recesso da Câmara Municipal e convocar uma sessão para discutir se os requerimentos de impeachment tinham fundamentos suficientes para ir adiante. Mas já na véspera da reunião, marcada para a quinta 12, estava claro que o ímpeto oposicionista se esgotara e os processos seriam arquivados. Presidente da Câmara e aliado do governo, Jorge Felippe (MDB) cuidou de garantir que os pedidos de impeachment não receberiam os votos necessários para avançar. Na barganha, o governo renovou agrados para manter sua base coesa.
Nesses dias tumultuados, um alívio para Crivella veio da notícia de que Paulo Messina, o secretário da Casa Civil, homem forte da prefeitura e importante articulador de alianças que havia solicitado exoneração, decidiu voltar atrás ao conseguir a cabeça do secretário da Educação, César Benjamim, seu desafeto.
O último requerimento de impeachment de um prefeito do Rio foi protocolado em 1988, contra Saturnino Braga, acusado de levar o município à falência — acabou arquivado por um voto. Em 1999, quando era governador do estado, Anthony Garotinho foi criticado até por correligionários por favorecer igrejas evangélicas na distribuição de programas de governo, mas nenhum processo foi aberto.
Aos membros da sua congregação reunidos na prefeitura, Crivella prometeu também pontos de ônibus perto de igrejas e uma manobra para furar a fila nas cirurgias de catarata: “É só conversar com a Márcia (Nunes, sua assessora), que ela vai anotar, vai encaminhar”. Com o episódio, o prefeito encolheu ainda mais, mas sua assessora ganhou notoriedade. Um sambinha improvisado — “Se não tem vaga no SUS / Nem remédio na farmácia / Fala com a Márcia / Fala com a Márcia” — já está fazendo sucesso nas redes sociais.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591