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Fábrica de enrosco

A manha de Trump é conhecida — desviar o foco de seus rolos com factoides —, mas agora ele chegou ao auge: reconheceu Jerusalém como capital de Israel

Por Johanna Nublat Atualizado em 8 dez 2017, 06h00 - Publicado em 8 dez 2017, 06h00

Sempre que se sente acuado ou derrotado, o presidente Donald Trump inventa factoides para desviar a atenção pública. Neste mês, ele finalmente colheu uma vitória robusta no Congresso. Os senadores aprovaram a mais profunda reforma tributária dos últimos trinta anos. A glória, no entanto, foi rapidamente ofuscada pelo descontrole do polegar presidencial. No mesmo dia, Trump deixou escapar em um tuíte que, ao demitir seu assessor nacional de Segurança, Michael Flynn, em fevereiro, já sabia que ele tinha mentido ao FBI, a polícia federal americana. E a fogueira ardeu.

Rememorando: em depoimento ao FBI em janeiro, Flynn negou ter discutido questões de Estado em conversa com um representante do governo da Rússia. Na semana passada, porém, ele admitiu ter mentido e fez um acordo de colaboração com o FBI. Trump, talvez para parecer dono da situação, disse, num tuíte, que já tinha conhecimento disso e por esse motivo havia demitido Flynn. O problema é que, pouco depois do depoimento mentiroso de Flynn ao FBI, o presidente pedira ao então diretor do órgão, James Comey, que enterrasse essa investigação sobre laços com a Rússia. Ora, se fez esse pedido ao FBI sabendo que seu subordinado mentira ao mesmo FBI, então Trump estava tentando embolar a investigação. Isso é obstrução de Justiça, crime que levou Richard Nixon à renúncia nos anos 70.

Agora, a sorte de Flynn e Trump está ligada à investigação sobre o potencial conluio com os russos na campanha republicana na eleição de 2016. Como a reforma tributária não estava sendo suficiente para ofuscar a repercussão do seu tuíte demolidor, o presidente enfiou a mão no baú de promessas eleitorais, tirou lá de dentro uma de potencial explosivo e a lançou no colo do público. Eis o anúncio bombástico, feito na quarta-feira 6: os Estados Unidos passam a reconhecer Jerusalém como capital de Israel e a embaixada americana será transferida de Tel-Aviv para a cidade histórica cuja posse é um dos elementos que compõem o barril de pólvora em que se transformou a região.

JONATHAN ERNST
Confissão – Flynn, aliado de Trump: mentira ao FBI e acordo de colaboração (Jonathan Ernst/Reuters)

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu festejou o anúncio. Boa parte dos eleitores de Trump, composta de evangélicos, também celebrou a decisão. Desde que Israel anexou a parte oriental de Jerusalém, na Guerra dos Seis Dias (1967), vários países se opuseram à soberania israelense sobre a cidade. Por isso, apesar de a capital de Israel sempre ter sido Jerusalém (é lá que ficam a sede dos ministérios e o Parlamento), as embaixadas estrangeiras concentram-se em Tel-Aviv. Nos anos 1980, quando o Parlamento de Israel aprovou uma lei declarando oficialmente que a cidade era indivisível, os países que até então não tinham tirado sua representação decidiram fazê-lo. Afinal, os palestinos reivindicam a parte oriental da cidade, com 300 000 habitantes, como capital de seu futuro Estado, e a expectativa era que o tema seria discutido em negociações amplas de paz entre israelenses e árabes.

A atitude de Trump passou à margem desse processo e solapou as condições dos Estados Unidos de atuarem como mediador no conflito. “Essa decisão é totalmente motivada por considerações domésticas. É imprudente e perigoso arriscar o caos e até a guerra para agradar à sua base eleitoral”, diz Jeffrey A. Engel, diretor do Centro de História Presidencial da Universidade Metodista do Sul, no Texas.

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Não havia nada no cenário do Oriente Médio que demandasse uma iniciativa desse tipo. As rixas entre israelenses e árabes estavam em segundo plano com as guerras na Síria e no Iêmen, o programa nuclear iraniano e as disputas por hegemonia entre Arábia Saudita e Irã. Esperava-se até que, em algum momento, os sauditas assinassem um histórico acordo de paz com Israel e que as facções palestinas (o Hamas e o Fatah) chegassem a um consenso. Essa réstia de paz agora está sob risco. Vários governantes de países muçulmanos lançaram ameaças veladas. “Senhor Trump! Jerusalém é uma linha vermelha para os muçulmanos”, disse o presidente turco Recep Erdogan. “Tal medida só servirá para beneficiar os terroristas. Provocará indignação pública em todo o mundo islâmico, dinamitará o terreno para a paz e desatará novas tensões e confrontos.”

Ao arriscar incendiar a região, Trump ameaçou o trabalho de seu genro, Jared Kushner, incumbido de fechar um acordo entre israelenses e palestinos. Para Trump, mais importante do que a paz mundial é o fato de que Flynn está colaborando com a investigação do Russiagate. Na semana passada, o Deutsche Bank, o maior banco da Alemanha, entregou ao FBI dados sobre as contas que Trump tinha antes de assumir a Presidência. Na quarta-feira 6, soube-se que um informante relatou que Flynn teria antecipado a um ex-parceiro de negócios a intenção de Trump de acabar com as sanções impostas pelo antecessor à Rússia. Se as sanções fossem rasgadas após a posse de Trump, isso favoreceria um empreendimento que teve a participação de Flynn no passado. Com tantos problemas jorrando, é de imaginar que Trump não vá parar de criar bobagens. Um levantamento do jornal The Washington Post revelou que o presidente disparou uma média de 5,5 afirmações falsas ou diversionistas por dia desde que assumiu a Casa Branca. Haja paciência.


De tanto dançar na cabeça das cobras

Bombardeio – Huti em prédio destruído pela coalizão saudita na capital iemenita, Sanaa, no dia 5 (Mohammed Huwais/AFP)

O militar e boxeador Ali Abdullah Saleh assumiu a Presidência do Iêmen do Norte em 1978, continuou no poder quando o país se unificou com sua porção comunista do Sul, em 1990, e só saiu em 2012, pressionado pelos protestos da Primavera Árabe. Sua principal astúcia foi comprar apoios e costurar alianças com outros países e entre tribos, partidos e movimentos nacionalistas. Na sua própria definição, governar o Iêmen era como “dançar na cabeça das cobras”. Substituído por seu vice, Abd Mansur Hadi, Saleh continuou fazendo conchavos, mas superestimou sua capacidade de manobrar. Na segunda-feira 4, rebeldes xiitas hutis, treinados e armados pelo Irã, atacaram o complexo em que ele vivia na capital, Sanaa, e mataram-no com um tiro na nuca. Familiares de Saleh, ele próprio xiita, lavaram o corpo, como manda a tradição, e enrolaram-no em um cobertor florido. A picape que o conduziria ao funeral foi interceptada pelos rebeldes, que filmaram a cena e a publicaram nas redes sociais.

Manobra Arriscada – Saleh: troca de aliados (Khaled Abdullah/Reuters)

A guerra civil no Iêmen começou em 2015, quando uma coalizão liderada pela Arábia Saudita, sunita, passou a atacar os hutis. Foi com esse grupo que Saleh decidiu se unir, para manter alguma influência. O bando formado por hutis e os comandados de Saleh espalharam minas terrestres pelo país e bombardearam bairros densamente povoados. Sequestraram homens e mulheres e impediram a entrega de ajuda humanitária na guerra que já matou mais de 5 000 pessoas. Há duas semanas, Saleh decidiu trocar de lado e começou a conversar com a Arábia Saudita, esperando voltar a ter um posto político no futuro. “Vamos virar uma página”, disse ele a um canal de TV. Os hutis não perdoaram.

No Oriente Médio, onde vendetas pessoais eternizam conflitos armados, seu filho Ahmed Saleh prometeu vingança: “Vou liderar a batalha até que o último huti seja expulso do Iêmen. O sangue do meu pai soará como o inferno nos ouvidos do Irã”. Saleh foi um tirano corrupto e cruel, mas sua morte não traz nenhuma melhora para o país. Apesar dos bombardeios da Arábia Saudita, que usa armas internacionalmente proibidas, algumas fabricadas no Brasil, ainda não apareceu um provável vencedor nessa guerra.

Duda Teixeira

 

Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560

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