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Está tudo errado

Dono de hospitais que atendem de graça, Henrique Prata diz que existe todo um sistema para destruir o SUS e entregar saúde do brasileiro à medicina privada

Apresentado por Atualizado em 18 jan 2019, 07h01 - Publicado em 18 jan 2019, 07h00

Três reuniões com as presidências do BNDES, da Petrobras e do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, fizeram o empresário paulista Henrique Prata chegar uma hora e meia atrasado para esta entrevista. Calmo, justificou-se: “Pedi a eles que me colocassem, o mais rápido que pudessem, na grade de seus beneficiários. Estou precisando muito de dinheiro”. O pedido — receber o equivalente a 1% do valor do imposto de renda dessas empresas — destina-se aos seis hospitais, nove clínicas e 22 unidades mó­veis de atendimento que Prata mantém em oito estados do país, todos com atendimento absolutamente gratuito. Entre eles está o tradicional Hospital de Câncer, em Barretos, no interior de São Paulo, recentemente rebatizado de Hospital de Amor. Desde a década de 80, a vida de Prata, hoje com 66 anos, é pedir dinheiro para sustentar seus centros médicos — o que o tornou, a um só tempo, um grande filantropo e um crítico feroz do sistema de saúde no Brasil. Para ele, a crise na saúde pública tem um responsável direto. “A medicina privada drenou os recursos públicos para si mesma, e quem paga o pato é o povo”, diz. A seguir, sua entrevista.

Antes da posse presidencial, o senhor enviou carta a Jair Bolsonaro sugerindo o fim do programa de isenção fiscal para os hospitais privados de excelência, como o Sírio-­Libanês, o Hospital do Coração e o Albert Einstein. Por quê? Porque iniciativas como essa representam uma afronta aos brasileiros que estão nas filas dos hospitais públicos. O programa de incentivos fiscais, que atende pela sigla Proadi, há nove anos desobriga instituições que se destacam no país de pagar imposto de renda. Em contrapartida, elas devem ajudar o Sistema Único de Saú­de (SUS), qualificando profissionais, oferecendo novas tecnologias e técnicas de gestão. O problema é que os resultados são irrisórios. Além disso, o governo deveria distinguir entre instituições filantrópicas e instituições privadas que praticam a filantropia apenas para obter os incentivos tributários, como ocorre com a maioria dos hospitais beneficiados pelo Proadi. Pior ainda. Essas instituições privadas, além do Proadi, participam de outros programas, como o Pronon, de atenção oncológica, para obter mais vantagens tributárias. Não só recebem benefício duplo como concorrem com instituições que atendem principalmente pacientes do SUS e têm de conviver com grandes dificuldades de custeio. Em resumo, está tudo errado.

O senhor é conhecido como “o chato do hospital”, aquele que vive pedindo dinheiro. Será sempre assim? Meus seis hospitais e nove clínicas só atendem gratuitamente. O SUS cobre apenas 30% dos atendimentos dos hospitais e 10% dos procedimentos das clínicas. O restante é bancado pelo dinheiro que consigo batendo à porta dos empresários. Para você ter uma ideia, meu hospital mais recente, na Amazônia, foi construído em dois anos com 100 milhões de reais, tudo vindo de doações privadas. Tudo: terreno, prédio, equipamentos. Não tive incentivo fiscal, nem um real de dinheiro público. No início, na década de 80, quase ninguém queria saber de mim, chegavam a me evitar. Atualmente, 300 empresas me ajudam, dos mais variados setores — alimentação, cosméticos, bancos. Hoje sou recebido pela presidência das empresas e me estendem tapete vermelho. A cons­ciên­cia dos empresários mudou.

Seu nome foi cogitado para ministro da Saúde, mas não emplacou. O que houve? Acredito que minhas ideias atrapalharam um pouco. Fui sondado na Festa do Peão, em Barretos. Depois disso, a notícia fervilhou nas redes sociais. Eu disse que me sentia muito lisonjeado, mas quando falei que ia acabar com a mordomia da medicina privada… Bem, aí o assunto murchou. Acho que foi a pior coisa que eu poderia ter dito. Mas fui sincero. Comigo não tem conchavo. Sei que sou um incômodo na medicina privada.

A que mordomia o senhor se referiu? A falência iminente do SUS, o maior sistema de saúde do planeta, foi promovida, em grande parte, pelo sistema de saúde privado. Ele ganha com isso. Com o fim do serviço público, o sistema privado ganhará mais que o dobro dos pacientes que tem hoje. Isso já está acontecendo. Veja a entrada das clínicas populares privadas. Elas praticam uma medicina barata e muito benfeita, com bons médicos, exames, consulta com hora marcada. Só que estão cobrindo uma ineficiência do SUS.

O SUS, então, está falindo para dar espaço à medicina privada? Existe um enorme risco de entregarmos totalmente a saúde do país aos meios privados. Há um grande escândalo acontecendo. O buraco está na relação financeira entre os dois sistemas. Quando um paciente se submete a um procedimento de alta complexidade pago pelo SUS mas executado em um hospital privado, o governo paga a tabela mais alta do serviço privado. No caso de um transplante de fígado, por exemplo, o governo chega a pagar cerca de 100 000 reais ao hospital privado. Já quando o hospital privado tem de pagar ao SUS, vale a tabela do sistema público, que é muitíssimo mais baixa. Chamo esse mecanismo de caixa-preta da saúde pintada de branco. Estamos no fundo do poço. Estou muito angustiado. Há também um problema de base. É urgente submeter o SUS a uma boa gestão financeira. Há um tremendo desperdício de dinheiro público. Só em medicamentos são desperdiçados milhões de reais por ano. São remédios vencidos, ou que não chegam ao destino, ou compras malfeitas. Além disso, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os planos de saúde, vem propugnando um modelo de saúde pública baseado em planos básicos de saúde privados para todos. Essa é uma das tentativas de golpe do sistema de saúde privado. Se concretizada, acabará com o SUS.

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“Quem influencia as leis de serviço público são os médicos da medicina privada, os doutores do rei. Você acha que os políticos e seus familiares usam o Sistema Único de Saúde?”

Por que a ANS teria interesse em prejudicar o SUS? Como a ANS regula os planos de saúde do Brasil, é do seu interesse que as operadoras herdem os milhões de brasileiros que hoje dependem exclusivamente do sistema do governo.

Falta investimento no SUS? Não há dúvida de que o investimento tem de aumentar e com urgência. A diferença entre os dois sistemas é brutal. De 2009 a 2017, para se ter uma ideia, os valores dos procedimentos do sistema privado subiram mais de 100%, enquanto os preços do SUS se mantiveram absolutamente congelados.

Por que isso acontece? Porque quem influencia as leis de serviço público são os médicos da medicina privada, os doutores do rei. Você acha que os políticos e seus familiares usam o SUS? Para piorar, cada partido comanda o Ministério da Saúde para fazer a sua política e não pensa na solução dos problemas, ainda mais a médio e longo prazo. A medicina privada drenou os recursos públicos para si mesma, e quem paga o pato é o povo.

Em que setor do SUS a crise tende a ficar mais grave? Na oncologia. A imunoterapia, que usa o sistema imunológico do paciente para atacar as células do câncer, é uma revolução. Esse é um dos tratamentos mais caros da medicina. Digo que é um procedimento para levantar defunto, de tão bom que é. Só que a chance de esse tipo de técnica ser coberto pelo SUS é remotíssima se as coisas continuarem como estão. Será, infelizmente, um tratamento de excelência destinado apenas a quem tem muito dinheiro.

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Qual é a sua opinião sobre o programa Mais Médicos? É importantíssimo. Um sucesso. Supriu uma carência da assistência básica. Se os postos de saúde não resolvem, todo o resto é contaminado, incluindo procedimentos de média e alta complexidade. Sei disso na prática. Em meu hospital de câncer em Barretos, recebo muitos pacientes das regiões Norte e Nordeste do país. Antes, 70% dos doentes chegavam ao hospital com câncer avançado de mama, ovário e útero. Coloquei então 22 unidades móveis visitando lugares remotos para oferecer exames preventivos à população carente, sobretudo ginecológicos. Sabe o que aconteceu? Hoje, em vez de 70%, apenas 2% dos pacientes que me chegam das regiões Norte e Nordeste têm câncer avançado. Um câncer inicial me custa 10 000 reais em dez meses. O avançado sai por 160 000.

“A imunoterapia, que usa o sistema imunológico do paciente para atacar as células do câncer, é uma revolução. Se as coisas seguirem como estão, será tratamento só para quem tem dinheiro”

Por que os médicos brasileiros não estão ocupando todas as vagas do Mais Médicos? Dou um ou dois anos, no máximo, para sobrar médico e faltar vaga. Os brasileiros agora podem até estar resistindo a ir para os lugares distantes, mas depois isso vai dar certo, eles vão se adaptar. No entanto, há dois fatores. Em primeiro lugar, eles têm de ganhar bem. Investir em médico não é perder dinheiro, pelo contrário. Em segundo, eles têm de ser cobrados pelo que fazem. Sou exemplo disso. Há dois anos passei a gerir a Santa Casa de Barretos. Assumi o hos­pital com 120 médicos e uma dívida de 2,8 milhões de reais. Hoje tenho 200 médicos e uma dívida de 1 milhão. O que fiz foi mudar o esquema de trabalho. Nove em cada dez médicos davam plantão a distância. Iam para o hospital só quando eram chamados. Na verdade, trabalhavam no serviço privado e batiam ponto no público. Isso é uma barbaridade, apesar de ser permitido pelos conselhos de medicina. Sem a presença do médico em tempo integral, os índices de saúde eram piores. Com esse sistema, três de cada dez pessoas morrem desnecessariamente nos serviços de urgência. Repito: o problema maior da saúde pública do país está na má gestão. E disso eu entendo. Mas agora estou com esperança de que a situação mude.

O senhor é filho de médicos e trabalha com médicos. Nunca pensou em fazer medicina? Para assumir o hospital do meu pai, em Barretos, então à beira da falência, no fim da década de 80, negociei com fornecedores, agiotas e funcionários. Vendi as terras da minha mãe. Levantei esse hospital, e hoje ele atende 880 000 pessoas por ano e reúne 380 médicos e 3 500 funcionários de outras áreas. Não estou de brincadeira. Ofereço serviços da mais alta tecnologia e tenho parceria com o MD Anderson Cancer Center e o St. Jude Children’s Research Hospital, nos Estados Unidos, os maiores centros oncológicos do mundo. E construí outros tantos hospitais. Sou um bom administrador. Isso é nato em mim. Nunca estudei. Fui criado por meus avós numa fazenda. Se fosse médico, nada disso teria acontecido. E me acho uma pessoa privilegiada. Salvo mais vidas do que 1 000 médicos juntos.

Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618

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