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Em defesa das chuvas: potencial ameaçado

Ao enfraquecer a proteção ambiental à Amazônia, o governo põe em risco a liderança do Brasil na exportação de alimentos e as reservas de água no sul do país

Por Thomas E. Lovejoy*
Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00

Basta observar a estimativa de crescimento da população global para saber que alimentar tantas pessoas adequadamente é não apenas um imperativo moral, mas também um desafio. O potencial do Brasil para ajudar a suprir essa necessidade é considerável. O país já é o maior exportador agrícola, tem uma das melhores agências de pesquisa de agricultura nos trópicos, a Embrapa, e aspira a produzir 10% da comida mundial. Essa não é, porém, uma conclusão definitiva.

Tal potencial depende diretamente de detalhes do que está sendo feito, e onde. Ironicamente, muito vai depender de decisões sobre a Amazônia. A floresta, o maior repositório de diversidade biológica da Terra, é uma gigantesca biblioteca para as ciências da vida, em que cada espécie contém uma gama de soluções para diferentes desafios e oportunidades biológicas. Qualquer uma delas tem o potencial de transformar as ciências da vida e beneficiar as práticas agrícolas.

Tomemos como exemplo a formiga-corta­deira. Extraordinária em vários sentidos, ela é capaz de desfolhar uma árvore ou uma lavoura da noite para o dia. Ainda que um agricultor local amaldiçoe as saúvas, as formigas são elas próprias verdadeiras agricultoras, pois usam as folhas como cobertura vegetal para suas fazendas subterrâ­neas de fungos. Elas são eficientes em não usar plantas com fungicidas naturais. Estudando-se as árvores que as formigas evitam, po­dem-se descobrir muitos novos fungicidas com grande potencial de uso nas lavouras. Eles poderiam melhorar a agricultura brasileira e se tornar produtos comercializáveis.

Além disso, a agricultura ao sul da Amazônia precisa de água da chuva e depende em grande medida da umidade gerada coletivamente por toda aquela biodiversidade. Essa chuva de origem amazônica é igualmente importante para a umidade do solo e para as reservas urbanas de água ao sul da floresta: uma “exportação” de umidade que tem sido chamada de “rios voadores”.

Nos anos 1970, o cientista Eneas Salati demonstrou pela primeira vez na história que a vegetação pode ter uma grande influência no clima ao provar que a Amazônia produz metade de sua chuva. A maior parte evapora da superfície das árvores e transpira através de suas folhas — algo visível nas né­voas de umidade que sobem da floresta após uma tempestade. Isso gera chuva repetidamente, enquanto as correntes de ar se movimentam para o oeste, do Atlântico para as altas paredes dos Andes, onde a maior parte se precipita em intensos aguaceiros e alimenta o maior sistema fluvial do planeta.

Uma porção da umidade é desviada para o sul. Quanto mais os cientistas estudam esse fenômeno, mais relevante ele se revela. Ele beneficia até a Bacia do Rio da Prata. Ou seja, a agricultura brasileira depende de um ciclo hidrológico amazônico — que também favorece os reservatórios urbanos.

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Para manter a integridade do seu ciclo hidrológico, a Amazônia precisa estar 80% intacta — provavelmente até um pouco mais para ter uma margem de segurança. Isso permite ao ciclo enfrentar os efeitos sinergéticos combinados de desmatamento, mudança climática e uso indiscriminado de queimadas. É difícil ser preciso, mas o histórico de secas recentes (2005 e 2010) sugere que o sistema já está oscilando e pode estar perto de um ponto de não retorno para se tornar uma Amazônia mais seca, com vegetação de cerrado. Não faz sentido tentar descobrir qual é o ponto de retorno ultrapassando-o, ou indo até o seu limite, arriscando-se a que algum fator adicional empurre a região para além dele.

Por isso, mais do que impedir o desmatamento, deve-se promover o reflorestamento para não transpor a marca dos 20%. Isso significa que aumentar a área de agricultura e de outras atividades que geram desmatamento na Amazônia vai acabar prejudicando a agricultura nas regiões mais ao sul do Brasil. As tentativas de enfraquecer as áreas protegidas, a mais recente das quais é a remoção de restrições de reserva para a exploração de ouro e outros minérios na Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), podem levar ao desmatamento e à redução na quantidade de chuva para a agricultura brasileira.

No caso da Renca, sabe-se que é possível extrair minerais e depois, imediatamente, reflorestar a área, como é feito na mina de Juruti, perto de Santarém, no Pará. Não há motivo para que não se consiga prevenir o desmatamento espontâneo ao redor de uma mina. Além disso, as estradas necessárias para a atividade mineradora podem ser fechadas e reflorestadas assim que a extração for encerrada. Há bons exemplos disso na exploração de combustíveis fósseis sem estradas em Camisea, no Peru, e em Urucu, no Brasil, que se valem de um modelo conhecido como “offshore inland”.

A Renca também precisará ser administrada de maneira rígida para evitar que se abram as portas para a extração ilegal de ouro, como a que está se desenrolando na Amazônia Ocidental, na região peruana de Madre de Dios. É uma cena terrível: milhares de garimpeiros desceram a cordilheira para ganhar apenas o dobro de sua renda normal para perseguir o ouro, destruindo, no processo, 70 000 hectares de florestas inundadas e áreas adjacentes. As condições sociais são uma catástrofe e a poluição por mercúrio é avassaladora (a maior fonte de poluição por mercúrio no mundo é o garimpo ilegal de ouro). O cenário lembra o de Serra Pelada, pesadelo que jamais deveria se repetir em lugar algum.

Os diversos esforços para modificar e eliminar áreas protegidas são como uma estaca fincada no coração do ciclo hidrológico e da produtividade da agricultura brasileira ao sul da Amazônia. É desnecessário abrir mais campo para o gado: a Embrapa mostrou, alguns anos atrás, que é possível dobrar o estoque na Amazônia usando apenas metade das pastagens. A aceitação futura das exportações de carne brasileira depende de práticas sustentáveis.

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As implicações internacionais vão além da exportação de carnes. Outros países dependem da umidade proveniente da Amazônia. Além disso, muitas das áreas indígenas no Brasil foram demarcadas com apoio alemão por meio do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), do G-7 (grupo dos sete países mais ricos do mundo), administrado pelo Banco Mundial. O Fundo Amazônia do BNDES, apoiado pela Noruega, está atrelado à redução do desmatamento. Financiamentos do Banco Mundial e de ONGs vão para os dois Programas de Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa-1 e Arpa-2). Os compromissos do Brasil com a Conferência do Clima de Paris têm um importante componente florestal.

O novo código de mineração no Congresso, que cria uma Agência Nacional de Mineração, transfere a responsabilidade do governo às empresas e pode aumentar a perda de cobertura florestal. Não há motivos para acreditar que essa nova estrutura bastaria para garantir um desmatamento mínimo e elevados padrões e desempenhos ambientais. Um comitê de alto nível formado pela indústria e por especialistas ambientais seria capaz de obter um resultado satisfatório?

O futuro da agricultura brasileira e o papel do Brasil no mundo estão em jogo. Os tomadores de decisão de hoje têm uma escolha diante de si: soltar as rédeas das forças do desmatamento e serem conhecidos como aqueles que puseram um fim na Amazônia e nos rios voadores ou serem aqueles que respeitam e protegem a Amazônia como uma máquina de chuva, e dessa forma garantir o futuro do Brasil como uma potência agrícola.

* Thomas E. Lovejoy é biólogo, professor da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, e faz pesquisas na Amazônia desde 1965

Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546

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