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Eles voltaram

Com o aval dos médicos, mas à revelia da agência de saúde, o governo liberou três remédios para emagrecimento. Falta agora tornar o controle mais rígido

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 6 jul 2017, 19h26 - Publicado em 6 jul 2017, 13h50

“Entendo o drama de milhares de brasileiros que apresentam níveis perigosos de obesidade e precisam ser levados a sério, e com responsabilidade, tendo acesso a um tratamento médico controlado.” Assim o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), celebrou pelo Facebook, na tarde de sexta-f­eira 23, a mais ruidosa canetada de seu tempo como presidente da República em exercício — Michel Temer estava na Noruega. Nas redes sociais, ele anunciava a sanção (com a anuên­cia de Temer) da lei que libera a produção e a venda no país de remédios para emagrecer derivados da anfetamina.

As substâncias — anfepramona, femproporex e mazindol — haviam sido proibidas no país em 2011. Maia tocou em um vespeiro. Os três compostos foram liberados à revelia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por regular o uso de medicamentos no Brasil. A agência reguladora mantém uma argumentação rígida e sem recuos em relação às anfetaminas: elas provocariam mais riscos que benefícios, com evidente ameaça à saúde da população. Diz Jarbas Barbosa, diretor-presidente da Anvisa: “A lei cria um precedente terrível. Não cabe ao Congresso fazer análise científica de um produto médico”. Na queda de braço, por força de autoridade, o Executivo venceu, embora a Anvisa já tenha manifestado apoio a entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, que desejam revogar a decisão. No entanto, ao lado do governo está o Conselho Federal de Medicina, favorável ao uso das drogas. Afinal, quem está certo — a Anvisa ou os médicos? Há razões para os dois lados. A Anvisa está certa ao se preocupar com exageros. Na outra ponta, a comunidade médica sabe que, muitas vezes, remédios são a única saída.

A anfepramona, o femproporex e o mazindol são compostos com ação extremamente delicada no organismo. Eles atuam no sistema nervoso central, no núcleo cerebral responsável pela sensação de fome, o hipotálamo. Com isso, o resultado é direto: as substâncias reduzem o apetite, o obeso não ingere a mesma quantidade de comida a que estava acostumado e emagrece rapidamente. O mecanismo, no entanto, pode causar efeitos colaterais perigosos, que incluem palpitações, irritabilidade, insônia, aumento da pressão arterial e dependência. Há ainda outra questão. A indicação para emagrecer pode estimular por si só o uso indevido dos medicamentos — hoje em dia, pelos padrões de beleza ditados, dificilmente há alguém em paz com a balança. No início dos anos 2000, o crescimento do consumo desses remédios no Brasil foi de 500% em relação à década anterior. As mulheres brasileiras aparecem no topo de qualquer lista entre as maiores consumidoras dessa categoria de remédios no mundo, embora a maioria delas não tenha nenhuma prescrição para utilizá-los. Além disso, mais da metade consome a substância por mais de seis meses, o dobro do tempo máximo indicado pelos especialistas. Os médicos, mesmo com o apoio dado à aprovação, estão atentos ao uso irresponsável dos remédios. As entidades de controle deverão mudar as recomendações, deixando-­as mais rígidas. Diz Fabio Tujilho, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia: “A utilização deverá ser restrita a adultos que não tenham problemas cardíacos ou psiquiátricos e com receituário retido na farmácia”.

(Arte/VEJA)

A anfetamina foi sintetizada pela primeira vez na Alemanha, em 1887. Só foi usada para fins medicinais a partir da década de 20, quando passou a ser estudada por seu efeito bron­codilatador, ao aumentar a capacidade respiratória de pacientes com asma. O composto foi amplamente conhecido depois de ser utilizado durante a II Guerra Mundial. Os soldados o recebiam do governo como recurso para que ficassem mais despertos e sem fome. Hoje, esses compostos são uma das únicas soluções para muitas e muitas pessoas que precisam emagrecer. Dos 100 milhões de brasileiros que estão acima do peso, 40% não conseguem emagrecer apenas mudando o estilo de vida — só obtêm resultados reais com a ajuda de medicações. Não se trata só da falta de força de vontade, mas das próprias especificidades da obesidade. Há quem apresente um ritmo metabólico mais lento que o normal — e, por isso, queime menos gordura. Há quem esteja acima do peso por um problema genético. Há quem tenha um desequilíbrio químico cerebral e, portanto, precise de muita comida para que se sinta satisfeito. As anfetaminas reduzem, em média, 5% do peso corporal. Parece pouco, mas o índice é suficiente para evitar que 58% dos pacientes pré-diabéticos, por exemplo, venham a desenvolver diabetes, uma das doenças associadas à obesidade.

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Com a liberação do trio de medicamentos, sobe de quatro para sete o total de opções disponíveis aos obesos no Brasil. O orlistat, princípio ativo do Xenical, era uma das poucas alternativas no arsenal dos endocrinologistas. Autorizado desde 1999, o fármaco, contudo, é impopular devido a seus efeitos colaterais, ao agir diretamente no intestino. Um dos mais modernos é a liraglutida. A medicação, que imita a ação de um hormônio no organismo, foi aprovada no Brasil no ano passado e custa cerca de 800 reais por mês. O tratamento com as anfetaminas não ultrapassa 50 reais. “A ausência desses medicamentos no mercado durante esses anos todos afastou a possibili­dade de tratar a obesidade de milhões e milhões de brasileiros”, afirma o endocrinologista Freddy Eliaschewitz, diretor do Centro de Pesquisas Clínicas (CPClin), em São Paulo.

Recentemente, houve no Brasil um caso semelhante de aprovação de um medicamento por parte do governo — e não de uma agência reguladora. Há pouco mais de um ano, a fostoetanolamina, substância desenvolvida em laboratório no interior de São Paulo, e que supostamente combate o câncer, recebeu a sanção presidencial de Dilma Rousseff. Mas, no caso, há um detalhe que, em tese, faz muita diferença: a chamada “pílula do câncer” não tinha e não tem o aval da comunidade científica, ao contrário do que ocorre com os derivados de anfetaminas. 

Publicado em VEJA de 5 de julho de 2017, edição nº 2537

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