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“Ele nem sequer me ligou”

David Vallenilla, de 56 anos, ex-chefe de Nicolás Maduro e pai de jovem que morreu em um protesto

Por David Vallenilla
Atualizado em 3 nov 2017, 06h00 - Publicado em 3 nov 2017, 06h00

Quando David José tinha 5 ou 6 anos, perguntou se a Venezuela já tinha tido outros presidentes. Eu expliquei que sim, e que o país tem tradição democrática e de pluralismo. Mas meu filho só conheceu o chavismo. Sempre ensinei a tolerância e o respeito às opiniões divergentes em casa. Assim, David José cresceu e tornou-se um jovem que queria uma Venezuela diferente. Ele não era movido por nenhuma tendência política, apenas pela frustração. Eu sabia disso tudo, mas nunca soube que ele ia às marchas, aos protestos quase diários contra o governo de Nicolás Maduro. Por isso, fiquei surpreso quando, no dia 22 de junho, minha ex-­mulher Milagros, mãe de David, me ligou para dizer que ele tinha sido preso durante uma marcha.

A ligação caiu antes que eu pudesse me inteirar dos detalhes. Quando consegui falar com ela novamente, estava aos gritos, desesperada, e eu não entendia o que ela dizia. Eu estava sozinho e corri para o vizinho. Uma pessoa, que eu não conhecia, se aproximou e me mostrou a foto de um jovem que tinham acabado de matar. Era o meu filho. Com a alma dilacerada, joguei-me no jardim com os braços abertos antes de ir ao necrotério para reconhecer o corpo. David José tinha 22 anos quando um soldado abriu fogo contra ele em uma manifestação nos arredores de uma base militar em Caracas. Quatro balas o atingiram. Está tudo documentado em vídeos, que eu não vi nem quero ver.

Meu filho foi mais um venezuelano que perdeu a vida por ser idealista. No velório, várias moças que se apresentaram como namoradas dele vieram me dizer que tinham avisado David José sobre os perigos de participar das manifestações. Nunca fui aos protestos, mas não estou de acordo com as ações do governo. Não é o que o nosso país merece. Eu sempre achei Nicolás um sujeito equilibrado. Eu digo Nicolás porque conheci pessoalmente o homem que comanda os assassinos do meu filho. Ele era motorista de ônibus e eu era seu supervisor. Nunca tivemos diferenças no período em que trabalhamos juntos, entre 1995 e 2000. Ele conheceu meu filho ainda criança. No velório, uma pessoa se aproximou e perguntou se eu receberia uma ligação do ex-colega, agora presidente. Eu disse que sim, mas isso nunca aconteceu. Nós nunca voltamos a ter contato. Eu queria perguntar a ele como se sentiria se acontecesse o mesmo com ele. Gostaria de conversar com Nicolás, não com o presidente Maduro.

Recebi apenas um telefonema do vice-presidente, Tareck El Aissami. Exigi justiça para meu filho, mas isso está demorando para acontecer. David José não foi vítima de uma bala perdida. Ele foi executado e todo mundo sabe quem o matou. (Em 21 de outubro, o Ministério Público da Venezuela acusou o sargento Arli Cleiwi Méndez, da Aviação Militar Bolivariana, de homicídio qualificado pela morte de Vallenilla.) Nunca pensei que fosse passar por algo assim. Quando via os pais de outros jovens mortos pedindo “justiça”, a palavra me parecia perfeita. Uma pena que tenha sido banalizada.

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David José era meu único filho. Um menino com um sorriso encantador. Ele foi esportista, jogava beisebol e polo aquático. Aos 15 anos, ele resgatou uma cachorra que estava muito doente e teve de cuidar dela. Foi assim que descobriu a paixão pela área médica. Foi bombeiro voluntário e terminou o curso de enfermagem em março. A formatura estava marcada para agosto. Ele tinha acabado de receber seu primeiro salário, 30 000 bolívares pela primeira quinzena de trabalho (cerca de 5 dólares, pelo câmbio paralelo). Ele me perguntou, indignado, como poderia sobreviver se eu deixasse de auxiliá-lo em seus gastos. Então, David José começou a pensar em tirar a cidadania espanhola, à qual tinha direito pelo lado materno. Mas o destino traçou esse caminho e deve haver uma razão de ser. Muitas pessoas me dizem que David José foi um herói muito valente. Eu também acredito nisso.

Em depoimento a Nathalia Watkins, em Caracas

Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição nº 2555

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